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"A tecnologia pode mudar a vida das pessoas", afirma Ronaldo Lemos

 (Foto: Divulgação/ITS)

 

Não é fácil falar com Ronaldo Lemos. Na primeira vez que tentamos, ele estava em Nova York. Na segunda, prestes a embarcar para Pequim. O advogado mineiro nascido em Araguari tornou-se conhecido ao liderar o processo de consulta pública que resultou no projeto de lei do Marco Civil da Internet, aprovado há três anos.

Formado em Direito pela USP, ele começou a se interessar por tecnologia logo no início do curso, em 1994: “Quando entrei na faculdade, ainda não havia provedores de internet no Brasil, mas a USP começou a abrir o acesso discado para os bolsistas, então tive logo o meu primeiro e-mail, que era rol@usp.br”.

Foi graças a esse e-mail que ele conseguiu o primeiro estágio, justamente na área de telecomunicações. “Enviei meu currículo, que era o de um estudante sem experiência. Mas nos meus dados tinha o e-mail, e isso chamou atenção. Curiosamente, no mesmo currículo coloquei meu telefone errado. Eles tentaram me contatar por semanas e precisaram mandar um mensageiro, porque o escritório não tinha e-mail.”

Hoje, Lemos é professor da Uerj, apresentador da GloboNews e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio). Foi no ITS Rio que ele ajudou a desenvolver o Mudamos, um aplicativo criado para recolher assinaturas digitais de apoio a projetos de iniciativa popular — algo que, segundo ele, “pode mudar completamente a relação entre representantes e representados”.

Como exatamente vai funcionar o Mudamos?

O Mudamos cria uma caixa de ferramentas para promover a participação pública. Desenvolvemos um aplicativo que vai permitir às pessoas assinarem projetos de lei de iniciativa popular. A Constituição prevê que, se 1% dos eleitores assinarem um projeto de lei, ele tem de ser aceito pelo Congresso e votado como um projeto normal.

Apresentei a internet para muita gente. As pessoas ficavam impressionadíssimas, saíam da minha casa como se tivessem visto algo místico

O problema é que até hoje a tecnologia para colher essas assinaturas foi o papel, o que traz inúmeros problemas. Por exemplo, no papel é praticamente impossível auditar as assinaturas. Vimos isso acontecer agora com as “10 Medidas de Combate à Corrupção”, que obtiveram as assinaturas, mas tiveram de ser “adotadas” por um deputado. A mesma coisa ocorreu com a Lei da Ficha Limpa.

Com o aplicativo, será possível assinar um projeto de lei pelo celular, e as assinaturas são totalmente auditáveis. Estamos usando a nova tecnologia do Blockchain [sistema que garante a segurança das operações e que se tornou conhecido por ser usado em transações com bitcoins] para fazer isso, dando total transparência ao processo. Isso pode mudar completamente a relação entre representantes e representados.

A elaboração do Marco Civil da internet funcionou como um laboratório para o Mudamos?

O Mudamos é uma ampliação da experiência de construção colaborativa de uma política pública. Ele cria ferramentas que permitem a qualquer pessoa participar da construção de políticas públicas.

Foi exatamente o que fizemos com o Marco Civil. Construímos uma plataforma aberta e colaborativa para escrever toda a lei. Isso teve um impacto profundo em termos de transparência e de participação. As pessoas que participaram do processo ficavam impressionadas quando viam que seus comentários e opiniões eram debatidos e respondidos — ou, ainda, incluídos no projeto. Isso mostrou que é possível um modelo de construção de políticas públicas que seja mais aberto à sociedade e menos sujeito à corrupção ou a decisões tomadas atrás de portas fechadas.

A tecnologia transformou quase tudo nas últimas décadas, mas a política e, mais precisamente, o sistema representativo escaparam praticamente ilesos. A que se deve essa “impenetrabilidade”?

A política vem se distanciando da sociedade. Em vez de se tornar mais porosa e permeável, ela está ficando cada vez mais fechada em si mesma, obedecendo a uma espécie de lógica própria. São muitas razões para isso. Em primeiro lugar, o próprio sistema político brasileiro, fundado nesse chamado “presidencialismo de coalizão”. Outra razão é a corrupção, que permite que agentes privados possam “hackear” a política em favor de interesses próprios, deixando de lado o interesse público.

Em 2010, o governo anunciou a implantação do plano de banda larga nas escolas, que fracassou. Hoje, muitos lugares, inclusive escolas, seguem desconectados — o que é visto como uma demonstração de que a tecnologia está, na verdade, aumentando a desigualdade. Como resolver esse problema?

Essa questão é fundamental. Hoje, a maioria absoluta das escolas do Brasil não conta com banda larga de verdade. Em outras palavras, estão desconectadas da possibilidade de usar a internet para fins educacionais. Hoje, quando a conexão chega, a banda é tão curta que a internet só fica disponível para a direção da escola ou, quando muito, para os professores. Os alunos não têm acesso. Esse é um dos nossos desafios hoje: conectar todas as escolas do país em banda larga. Isso tem o potencial de reduzir o determinismo geográfico. Independentemente de onde uma pessoa nasce, ela poderá ter acesso a todo o conhecimento necessário.

É preciso lembrar que hoje é possível aprender tudo pela internet. Não só o conteúdo da escola, como física, química ou matemática — por exemplo, nos vídeos da Khan Academy —, mas também habilidades que a escola não ensina. É possível, por exemplo, aprender a programar, aprender atividades práticas, como consertar uma bicicleta, cozinhar, aprender um idioma e assim por diante. Quem tem acesso à rede, com um pouco de curiosidade e disciplina, pode aprender muita coisa nova e tem a capacidade de mudar a própria vida. Levar isso para dentro da escola é fundamental.

Enquanto em alguns lugares a internet ainda não chegou, em outros opera-se no limite. Você já disse que “estamos à beira de um apagão de conectividade”. Por que chegou-se a esse extremo e como evitar esse apagão?

A razão é que o tema da conectividade ficou anos à deriva no país. Não houve planejamento e coordenação necessários para promover investimentos em infraestrutura. Em síntese, o Brasil precisa de um novo plano nacional de Banda Larga, que coordene os esforços federais, estaduais e municipais permitindo levar conectividade a todas as escolas. Nesse quesito, estamos ficando atrás até mesmo de nossos vizinhos. Argentina, Chile, Uruguai e Colômbia têm feito um trabalho melhor que o Brasil em conectividade.

Faz três anos que o Marco Civil foi aprovado. Desde então, houve uma série de tentativas de alterá-lo ou atravessá-lo, como a fatídica proposta da limitação de dados e vários projetos de lei propostos pela CPI dos crimes cibernéticos. como você, que é o “pai da criança”, acompanhou esse processo?

O Marco Civil incomoda muito quem não gosta da liberdade na internet. Por exemplo, vários políticos prefeririam que a rede brasileira pudesse ser controlada e censurada. O Marco Civil não deixa isso acontecer, por isso a reação a ele é tão forte. Um dos maiores opositores do projeto foi o então deputado federal Eduardo Cunha.

Quando o Marco foi aprovado, ele rapidamente propôs um projeto de lei para alterá-lo, criando no Brasil um “direito ao esquecimento”. Seria um direito de apagar da internet informações julgadas “inconvenientes”. Na mesma linha, diversos outros deputados vêm propondo leis para mudar o Marco Civil, sempre buscando aumentar o controle sobre a internet.

O Marco já foi citado até pelo juiz que derrubou o WhatsApp. O que acha das interpretações deturpadas que têm sido feitas do texto?

O desafio de uma lei é não só sua aprovação mas também sua aplicação. O curioso é que o Marco Civil proibiu expressamente suspender ou interromper serviços da internet. Mesmo assim, houve alguns juízes de primeira instância que resolveram aplicá-lo incorretamente. Felizmente, os tribunais superiores foram rápidos em reverter essas decisões, dizendo claramente que estavam equivocadas.

Não tenho dúvidas de que o acesso à informação por meio da tecnologia pode mudar a vida das pessoas. Meu caso é um exemplo muito claro disso

Agora, o STF vai decidir sobre o caso. A questão da obtenção dos dados para fins de investigação criminal é legítima e importante. No entanto, não é bloqueando um serviço que esse tema irá avançar. O dano colateral é grande demais. Além disso, temos de lembrar que a regra na internet infelizmente é a vigilância. São poucos os serviços que adotaram um padrão de segurança criptográfica capaz de proteger os usuários de serem bisbilhotados. O WhatsApp fez isso, assim como a Apple, com o iMessenger ou o aplicativo Signal. É importante que existam serviços seguros, à prova de interceptação.

Uma das funções mais importantes do Estado é justamente a de zelar pela segurança. Hoje, se o Estado considerar você suspeito, ele pode entrar na sua casa — que até então era um território privado — e varrer tudo atrás de provas. Como fica o papel do Estado na prevenção de crimes quando ele perde esse “acesso privilegiado” a todos os lugares?

Acho que o Estado nunca teve ferramentas tão poderosas para investigação como tem atualmente. As revelações do caso Snowden e os documentos vazados pelo WikiLeaks, que aparentemente são verdadeiros, demonstram que o estado de vigilância é imenso. Estamos perdendo as poucas esferas privadas que ainda restam. É nesse contexto que os poucos serviços que adotam um sistema de proteção criptográfica contra vigilância surgem. Vale lembrar que, hoje, analisar um celular de uma pessoa é muito mais revelador do que entrar no domicílio dela. É preciso equilíbrio. É totalmente justificável que casos ilícitos possam ser investigados, mas é necessário haver freios e contrapesos para evitar abusos.

Falando em Snowden, logo depois que ele vazou os primeiros documentos, o governo brasileiro anunciou uma série de medidas de segurança, como um sistema de e-mails próprio, que foram deixadas de lado quando a crise chegou. Estamos seguros como estamos?

Não estamos seguros. Ao contrário, o Brasil não tem uma política ampla de cibersegurança para a administração pública. Recentemente houve o escândalo em que se divulgou acidentalmente todas as senhas de sites diretamente ligados ao governo federal. Não só isso é patético em si como as senhas divulgadas eram ridículas do ponto de vista de segurança. Havia até uma instrução que dizia “não mudar nunca” sobre uma das senhas divulgadas. Isso vai contra princípios elementares de segurança da informação. Precisamos de uma política geral de segurança para a administração pública. Estamos totalmente despreparados e expostos nessa área.

Faz dez anos que você escreveu o primeiro artigo defendendo a criação de um marco regulatório civil para a internet brasileira. Desde então, o que mudou de lá para cá?

No momento, estou envolvido na criação de outro marco, que é o Plano Nacional de Internet das Coisas. A ideia é desenvolver uma série de políticas públicas capazes de fomentar a chamada Internet das Coisas — que consiste em conectar objetos à rede, tanto utensílios domésticos, como geladeira ou televisão, quanto plantas industriais, sistemas de transporte urbano e assim por diante. Além disso, no Brasil ainda não temos uma lei de proteção de dados pessoais. Isso traz grande incerteza jurídica e deixa desprotegidos os usuários. Eu viajo bastante, e vejo o que está acontecendo em vários lugares do mundo. Tenho convicção de que nosso país pode ser grande em tecnologia e inovação, melhorando a vida de todos. Entretanto, para isso precisamos pensar grande e ter coragem e disposição para fazer acontecer.

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