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Comunidade quilombola tem terras invadidas pela primeira vez na história

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Às 4 horas da manhã do dia 20 de setembro de 2016, todos os moradores da comunidade Mumbuca já estavam acordados e a postos. Era o dia da colheita do capim dourado, o momento mais importante do ano para os cerca de 220 quilombolas que vivem entre os rios Novo e Sono, no coração do Jalapão, no estado do Tocantins.

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Antes de o sol nascer, um grupo de aproximadamente 15 jovens partiu para o reconhecimento do campo de colheita, localizado a aproximadamente 45 quilômetros do vilarejo. O ritual seria o mesmo de sempre: quando encontrassem um lugar com boa oferta do material, eles montariam acampamento e voltariam para buscar as pessoas mais velhas.

Dessa vez, contudo, onde esperavam encontrar um campo repleto de capim, o que eles viram foi só mato queimado. Pela primeira vez na história, os quilombolas ficaram sem o capim dourado.

Com a valorização do capim, utilizado para produção de artesanato vendido em todo o mundo, têm ocorrido cada vez mais saques e ataques aos campos de colheita, e Mumbuca é a maior prejudicada. Além de suas plantações serem roubadas, os moradores da região ainda foram vítimas de um incêndio criminoso na ponte que dá acesso ao núcleo da comunidade — para chegar até lá, tivemos de cruzar o rio guiando o carro pela parte mais rasa.

Quando começam as chuvas de verão, o acesso só é possível de balsa. “O capim dourado é um legado tradicional de nossos antepassados e a principal fonte de renda de nossa comunidade”, afirma Ana Cláudia Matos, que em 2012 tornou-se a primeira quilombola de Mumbuca a ingressar em uma universidade. Ela se formou assistente social e, em sua segunda incursão acadêmica, está no quinto ano de Direito.

“Temos que saber o que os homens de fora sabem de igual para igual, pelo menos para dizer que não queremos favores, mas que conhecemos e exigimos nossos direitos”, justifica. Matos é, talvez, a maior representante da nova geração de uma longa linhagem de lideranças femininas da comunidade quilombola.

O papel das mulheres em Mumbuca não está restrito a cerimônias religiosas e culturais: elas são as principais líderes desde a fundação do povoado, em meados do século 19. A comunidade foi criada a partir do encontro entre negros escravos fugidos de uma forte seca na Bahia e indígenas da etnia xerente sediados no Jalapão — onde ela se mantém até hoje. Os índios foram todos expulsos, com uma exceção: Jacinta, com quem um dos negros se casou e começou a linhagem que está na nona geração.

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AS FILHAS DE JACINTA
“Jacinta, minha tataravó, era uma mulher muito forte e guerreira”, conta Doutora, a atual líder do povoado. Batizada Noêmia Ribeiro da Silva, ela recebeu o apelido do pai aos nove anos após encontrar no mato uma planta chamada alfavaca e usá-la para curar um problema que ele tinha no olho.

“Ele me disse que eu tinha um sinal de inteligência muito grande, e que ia me pôr para estudar para ser doutora de verdade”, relembra. Doutora não estudou medicina, mas dominou o artesanato do capim como poucos — é especialista em chapéus — e, com o tempo, assumiu a posição de liderança tradicional máxima em Mumbuca, que tem esse nome por conta de uma espécie de abelha característica da região.

Desde a índia Jacinta, é para as mulheres que os quilombolas olham em busca de liderança, organização e dos elos com a história e tradição. Guardina, Laurina (a descobridora do capim dourado), Laurentina e Guilhermina, mãe de Doutora e conhecida como Dona Miúda, são as mulheres que já comandaram o povoado.

Além delas, houve um único homem, que foi o governante entre os períodos de Laurina e Laurentina. “É uma comunidade matriarcal desde o início. A decisão final parte das mulheres, como Doutora e Santinha [mãe do presidente da associação de artesãos e outra importante liderança]. Quem cuida da economia são as mulheres, assim como da criação dos filhos”, explica Ana Cláudia Matos.

Depois dela, outros 11 jovens de Mumbuca, na maioria mulheres, chegaram ao ensino superior. São estudantes de pedagogia, engenharia ambiental e educação do campo: “Todos os cursos têm significado para nós. Aqui, ninguém estuda agronegócio porque é algo que não faz sentido, pode nos destruir. Tudo é pensado para o bem coletivo.”

Irmã de Matos, Núbia Ribeiro, 16 anos, pensa em estudar Medicina para poder atender os conterrâneos que sofrem com a falta de hospital e até mesmo de posto de saúde. O atendimento médico mais próximo fica em Mateiros, a mais de uma hora de distância.

“A gente cresce com o exemplo dessas mulheres guerreiras que lutaram pelo nosso povo”, conta. O espírito de pertencimento à comunidade e ao território permeia toda a história de Mumbuca. “Eu ensino tudo que posso ensinar aqui, como aprendi com minha mãe, que aprendeu com minha avó. As mulheres ensinaram tudo e são agarradas a este povoado, nunca largaram isto aqui”, afirma Doutora.

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EXPULSÃO DO PARQUE
O primeiro impacto da perda da colheita é econômico. O artesanato gera quase todo o rendimento dos quilombolas e, para continuar vendendo utensílios, acessórios, bijuterias e outros produtos à base de capim dourado, eles agora terão de comprar o produto.

“Cada quilo de capim custa uns R$ 30, mas agora que sabem que estamos sem, o preço pode até dobrar”, preocupa-se Matos. As queimadas e os saques não foram as primeiras ameaças aos quilombolas. Os moradores de Mumbuca nunca abandonaram o lugar em que cresceram, mas por muito pouco a comunidade não perdeu o direito a seu território tradicional.

A criação do Parque Estadual do Jalapão, em 2001, colocou sob estatuto de proteção ambiental uma enorme área do estado de Tocantins que compreende a terra dos quilombolas.

A medida pegou de surpresa os mumbuquenses, que até aquele momento nem sequer tinham acesso à energia elétrica — a luz chegou somente em 2001. “O parque veio sem considerar a comunidade. Foi uma traição da lei. Jogaram por cima da gente e chegaram dizendo que aqui era parque e que ninguém poderia ficar na comunidade. O horror!”, relembra Doutora.

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Foi depois disso que o povoado passou a buscar o reconhecimento como quilombola. “Um professor veio aqui e viu nossas feições. Quando contamos nossa história, nos alertou que éramos quilombolas e que o Estado tinha uma dívida histórica conosco”, explica Matos. O reconhecimento garantiu a permanência de Mumbuca, mas a demarcação legal do território ainda não ocorreu.

Antes do boom do capim dourado e da chegada da energia elétrica, a população se sustentava por meio de produção de subsistência e escambo do artesanato. As plantações em roça, o cultivo de gado e o desmatamento para uso da madeira em construções de casas e barcos foram proibidos pela lei de proteção ambiental.

“Chegamos a receber multas de mais de R$ 10 mil por causa de um alqueire de roça. O povo precisa disso para sobreviver. Se eu não posso plantar onde meu avô plantou, onde vou plantar?”, pergunta Matos. “Não usamos trator, é tudo no machado e enxada. É sustentável, não é como essas empresas que devastam tudo.”

Durante a festa da colheita do capim dourado — realizada dias antes da descoberta do saque —, o procurador da República Álvaro Manzano levou à Mumbuca um termo de compromisso entre a comunidade e o Parque Estadual. Uma tentativa de regulamentar a relação.

“O documento busca compatibilizar, porque existe um direito constitucional do povo quilombola a seu território e a presença da unidade de conservação. Esperamos estabelecer um equilíbrio entre essas normas em conflito”, diz o representante do Ministério Público.

O direito à demarcação territorial e à tradição é a principal luta dos quilombolas. E os próximos desafios já estão postos: enfrentar a chegada do agronegócio ao Jalapão (capitaneado pelo projeto de expansão agrícola com investimento estrangeiro na região do Matopiba, acrônimo das iniciais dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) e a falta do capim dourado (sem território demarcado, a comunidade não tem direito oficial sobre nenhum campo de colheita, podendo, assim, ficar à mercê de saques aos campos que tradicionalmente cultivavam ou de verem essas terras exploradas por grandes latifundiários).

“O desafio é impedir que abram as terras aos latifundiários, que podem impedir nossas atividades tradicionais, como colher o capim, ou até mesmo nos fazer de serviçais deles”, diz Matos, que já traçou sua estratégia para os próximos meses. “Desde o fim do século 18, o poder público não faz nada aqui. O que temos aqui é construído com nossa força, pela associação de moradores. Neste ano, temos que nos manter de pé, ir todo dia monitorar os campos de capim e cobrar do poder público os seus deveres.”

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