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O novo Planeta dos Macacos faz você torcer contra os humanos

Se você gosta de contar ou ouvir histórias – e isso inclui ir ao cinema –, já deve ter tropeçado na expressão “suspensão voluntária da descrença”, cunhada pelo poeta inglês Samuel Coleridge em 1817.

Suspender a descrença é o jeito bonito de dizer que um escritor (ou diretor) é tão bom que você topa ignorar os erros científicos e as cenas inverossímeis de sua obra – e aceita de bom grado passar um longo período mergulhado em um mundo inventado, regido por outras leis.

Planeta dos Macacos: A Guerra, que saiu nos cinemas no último dia 3, é uma aula de Coleridge. No filme, uma linhagem de símios inteligentes e falantes, liderada pelo carismático chimpanzé César, varre a espécie humana da Terra. E quem assiste não só mergulha de cabeça nessa remota possibilidade científica como assume o lado dos macacos (!) – em cinemas de todo o mundo, grupos de Homo sapiens pagam ingresso para torcer pela própria aniquilação.

O novo título da franquia, como dá para imaginar pelo parágrafo anterior, é o último de uma trilogia que conta como o mundo que conhecemos foi parar na mão dos primatas, armando o cenário pós-apocalíptico do Planeta dos Macacos original, de 1968.

Por causa disso, o diretor Matt Reeves dá uma mãozinha para quem pegou o bonde andando, e antes da cena de abertura, com frases breves projetadas na tela, resume o que aconteceu na saga até agora. Nada te impede, é claro, de assistir aos dois filmes anteriores, de 2011 e 2014 – eles não são tão bons quanto o de 2017, mas ainda estão bem acima da média dos blockbusters.

Ao contrário do que vende o título, A Guerra não é um filme de guerra o tempo todo. Em sua receita, além de muitos (muitos) tiros, vão faroeste, Bíblia, um drama psicológico convincente e referências históricas.

O chimpanzé César (Andy Serkis) é uma espécie de Moisés particularmente peludo. No período em que se passa a história, graças a um vírus criado por cientistas humanos, ele e os demais macacos já atingiram o mesmo grau de inteligência do Homo sapiens. César discursa como Getúlio Vargas, cavalga como Lancelot e é padrão John Lennon de pacifismo.

O mesmo vírus que cria super símios mata seres humanos. Em um mundo vazio, com as cidades abandonadas já tomadas pela natureza, o cruel Coronel McCullough (Woody Harrelson) lidera um pequeno exército de humanos sobreviventes, imunes à “gripe símia”.

O quartel humano também é uma espécie de campo de concentração, em que macacos que costumavam seguir Koba – um bonobo que se revoltou contra a causa de César e foi morto – são submetidos a trabalhos forçados.

McCullough é uma versão pós-apocalíptica do Coronel Kurtz de Apocalypse Now. Seu humor, com jeitinho de psicopata, flutua de maneira imprevisível, e inclui ataques de fúria e momentos reflexivos típicos dos vilões de Gary Oldman. Ele quer salvar a humanidade – o que em princípio é uma boa ideia –, mas também pôs um belo preço na cabeça de César, o herói que os dois filmes anteriores nos ensinaram a amar e apoiar. De óculos aviador e e cabeça raspada, o personagem de Harrison é o estereótipo do militar intolerante – que você simplesmente não consegue apoiar, mesmo quando é a extinção do ser humano que está em jogo.

Tudo isso é narrado no tom mais sóbrio possível – e volta e meia beira o solene. O filme, na contramão de tantos longas de super-herói, não usa o humor para se ironizar ou aliviar a tensão.

Nos minutos iniciais, McCullough atira a primeira pedra, e põe César em um dilema: dar a outra face ou buscar a vingança. A segunda opção atira o líder símio em uma aventura envolvente, a que se unem Bad Ape – o alívio cômico – e a humana Nova – uma criança muda que seu escudeiro Maurice, o macaco mais simpático (e sábio) da história do cinema, decide adotar. Daí para frente é spoiler – melhor não comentar.

Ao longo do filme, é impossível se lembrar de que por trás da computação gráfica de César há um ator humano. Cada movimento do rosto de Serkis se traduz nas feições do chimpanzé, o que, segundo o ator, é mérito da pós-produção.

“O básico não mudou muito. Você veste um macacão com pontos que mandam um sinal que é captado por câmeras em 360º graus, e você veste uma câmera montada na cabeça, que captura sua expressão facial”, explicou Serkis à SUPER. “O que mudou mesmo foram os artistas e o programa que eles usam para gerar os personagens depois. As performances dos atores são renderizadas com muito mais fidelidade.”

César talvez não fosse o herói que os blockbusters queriam, mas era o que eles precisavam. Com crise de meia idade, dilemas éticos e uma jornada quase religiosa, ele leva nas costas três filmes perfeitamente coerentes e conectados entre si – que funcionam como um todo sólido, e não uma sequência de afterthoughts feitos à toque de caixa para encher os bolsos.

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