Como o preconceito contribui para o aumento da epidemia de aids
O último Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, de 2016, mostrou que os casos de HIV entre os jovens no Brasil aumentaram consideravelmente. Eu sabia disso, mas, até quase enfartar no posto, simplesmente não prestava atenção. Alheio a mim, o problema avançava: das 32.321 novas infecções por HIV registradas em 2015, 24,8% aconteceram com pessoas entre 15 e 24 anos.
Muitos apontam como causa a facilidade de obter sexo por meio de aplicativos ou o fato de que os adolescentes não conviveram com o auge da epidemia. Mas, para os especialistas, a questão é bem mais complexa. “Continuamos com essa visão hipócrita de que falar sobre sexo incita os mais jovens, e não damos ferramentas para que eles tomem decisões mais seguras em relação à sexualidade”, afirma Georgiana Braga-Orillard, diretora do Unaids, programa conjunto da ONU sobre HIV e aids que tem como meta acabar com a epidemia até 2030.
A primeira pessoa que me fez perceber que eu não entendia nada sobre aids foi o artista Gabriel Estrela, de 25 anos. Em um vídeo com a youtuber Jout Jout, visto quase 800 mil vezes, Gabriel explicou que aids e HIV não são sinônimos. Foi o bastante para mudar minha relação com o vírus e fazer meu amigo entender que ele não iria morrer automaticamente, nem ter as feições cadavéricas exibidas por Matthew McConaughey em Clube de Compras de Dallas.
O HIV é um vírus que ataca o sistema imunológico, fazendo com que o organismo fique suscetível a doenças oportunistas. Isso porque, quando ele acaba com as células de defesa, a imunidade baixa, levando à manifestação da aids. É como em Doutor Estranho, quando os portais que protegem a Terra são destruídos e o planeta fica vulnerável a seres de outra dimensão. A questão é que, se o HIV não se replica, ele não destrói nossos portais.
Por isso, apesar de uma cura definitiva ainda não ter sido descoberta, tratamentos como aqueles disponíveis de graça pelo SUS são bem eficientes. Quando o HIV é bloqueado, a carga viral (quantidade de vírus no sangue) baixa até ficar indetectável. Os remédios funcionam tão bem que, em maio, pesquisadores da Universidade de Bristol mostraram que jovens que começaram o tratamento depois de 2008, quando já se sabia como manter a carga viral zerada de forma eficaz e duradoura, têm uma expectativa de vida de 78 anos — praticamente igual à de quem não tem o vírus.
No canal do YouTube Projeto Boa Sorte, Gabriel traz informações como essa e reflexões sobre a vida com HIV. Além de tomar até três comprimidos por dia (e dos possíveis efeitos colaterais no fígado e nos rins), quem vive com o vírus enfrenta algo mais devastador: a intolerância de uma sociedade cuja mentalidade em relação à aids ainda não evoluiu. Por isso, chamei Gabriel para me ajudar a encontrar outras pessoas que também lidam diretamente com a questão. Você vai conhecê-las ao longo da reportagem.
Perconceito e epidemia
A questão do preconceito não pode ser separada de uma síndrome estigmatizante como a aids. O assunto é tão importante que o Unaids criou um índice que mede como isso contribui para o avanço da epidemia, o Stigma Index — que deve incluir o Brasil no próximo ano.
Leis como a que garante o tratamento gratuito pelo SUS e a que penaliza atos de discriminação ajudam, mas não são suficientes para mudar a mentalidade da sociedade, que ainda enxerga quem vive com o vírus como um “merecedor”. Além disso, o acesso à saúde e à orientação não é igual para todos.
“Pensa na travesti que vai fazer o teste e enfrenta olhares e piadinhas do segurança, da atendente...”, exemplifica o infectologista Ricardo Vasconcelos. A forma como um homem branco da classe média vai lidar com o vírus não é a mesma de uma mulher negra da periferia. Para piorar, muitas vezes o preconceito vem da própria classe médica.
Veja a reportagem de capa da edição de agosto (313). Para ler o texto completo, baixe o app ou assine a revista a partir de R$ 4,90.
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