Por que heterossexuais devem assistir à série 'Quando Fazemos História'
Em 1953, o escritor norte-americano James Baldwin descreveu a visita que fez a um vilarejo na Suíça, onde ninguém nunca havia visto uma pessoa negra como ele antes. Para Baldwin, seria de se esperar que ele se sentisse como os primeiros exploradores brancos, que despertavam curiosidade devido a sua singularidade.
"Tal como os exploradores, Baldwin era mais viajado e mais culto do que os moradores locais. Mas não conseguiu se sentir assim; pelo contrário, sentiu-se humilhado e constrangido", relatou a filósofa Sarah Bakewell, no livro No Café Existencialista.
O relato mostra um exemplo clássico de racismo e de como pessoas que não o sofrem, muitas vezes, também não o percebem. Se o escritor tivesse comentado o fato de ser gay não seria surpresa se os olhares fossem mais repreensivos.
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Esta ideia está presenta na minissérie Quando Fazemos História, do canal Sony. Criada por Dustin Lance Black, vencedor do Oscar de melhor roteiro original por Milk, em 2009, a obra tem produção executiva e direção de Gus Van Sant, além de contar com atores como Whoopi Goldberg e Mary-Louise Parker no elento.
A adaptação do livro When We Rise, de Cleve Jones, foca não apenas na ascensão de Jones como um dos maiores militantes LGBT+ dos Estados Unidos, mas também nas histórias de personagens reais, como a militante lésbica e feminista Roma Guy, o ativista gay e negro Ken Jones e a ativista trans Cecilia Chung.
Traçando a tragetória dos direitos LGBT+ desde 1972 — no pós-Stonewall (movimento de resistência que deu origem às atuais paradas gays) — até 2013, a série é uma aula de história sobre os movimentos sociais e suas rixas internas.
Como resolver conflitos
No ensaio Os comunistas e a Paz, Jean-Paul Sartre faz uma proposta ousada para solucionar conflitos. Para o filósofo existencialista, as situações poderiam ser resolvidas adotando a versão dos fatos dos "mais desfavorecidos". Para Sartre, se tem algo que não é verdadeiro aos olhos dos menos favorecidos, então não é verdadeiro.
Qualquer gay, lésbica, trans, negro ou mulher (ou membro de qualquer grupo miniritário) é capaz de elencar uma série de situações em que pessoas que não fazem parte deste grupo não são capazes de perceber.
Por exemplo: em uma sociedade na qual ser heterrossexual é a norma, o simples ato de pessoas do mesmo sexo andarem de mãos dadas deixa de ser um gesto público de carinho e passa a ser um ato revolucionário — uma vez que qualquer demonstração de afeto gay pode ser entendida como um ofensa em lugares como o Brasil, que é o país que mais mata LGBTs no mundo.
A questão — que transforma a proposição de Sartre em um paradoxo — é: quem é o menos favorecido dos menos favorecidos?
Algumas das partes mais interessantes da série aparecem quando esse conflito é posto em cena, como quando as feministas se recusam a aceitar a participação de lésbicas em seu movimento; as lésbicas, por sua vez, se recusam a pedir ajuda de homens gays, por entenderem que eles detém privilégios que são incompatíveis com o fato de ser mulher e lésbica.
Aids e a união
Com a chegada da epidemia de aids, frente uma ameaça comum, esses conflitos internos começam a perder força. E a série não poupa nas críticas que mostram por que, muito mais do que uma doença, a síndrome se tornou uma condição estigmatizada, o que faz com que ela avance cada vez mais até hoje, como mostra o último relatório do Unaids.
Em um dos melhores momentos, os personagens mostram como a aids, que começou afetando homens gays em sua maioria, só passou a ser vista como um problema de saúde pública depois que mulheres e crianças começaram a ser infectadas pelo HIV também.
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É interessante notar ainda como os argumentos de pessoas que não estão envolvidas na reposta do problema permanecem exatamente iguais, quase 40 anos depois do início da epidemia. E revelam como estes argumentos pautados pelo preconceito (como o de que falar sobre sexo incentiva as crianças a fazê-lo) só atrapalham a busca por uma resposta efetiva.
Ao mesmo tempo em que Quando Fazemos História pode ser um alento para pessoas que fazem parte de grupos tidos como minoria na sociedade, ela também pode ser um chacoalhão para todas as outras que vivem de acordo com as normas sociais e não se sentem à vontade para questioná-las.
"Nós não criamos a série para metade do país", afirmou o criador Dustin Lance Black, ao The New York Times. "Acredito que a maioria dos norte-americanos, incluindo os que votaram em Donaldo Trump, vai se apaixonar por estas famílias da vida real e com certeza vão relacionar suas histórias às delas."
O canal Sony vai exibir os 8 episódios da série dividos entre os dias 23 e 30 de agosto (com exibição de quatro episódios seguidos em cada dia), a partir das 19h.
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