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Como uma mistura de fascismo e socialismo moldou a Coreia do Norte

 

Em uma de suas obras, Cho Ki-chon, o pai da poesia norte-coreana, escreveu: “E então sua mãe apareceu sobre a água celestial, e com isso ele ganhou nova força, novo propósito. Naquela noite, pensou: ‘Somos poucos, mas estamos certos. Por mais que morramos e sangremos, vamos defender o povo’”.

É assim que o poeta, considerado o “Maiakóvski norte-coreano” por seus compatriotas, descreveu a invenção da Ideia Juche (pronuncia-se tchu’tchê), a ideologia oficial da Coreia do Norte, criada pelo líder supremo Kim Il-sung. O poema é também uma metáfora da Coreia do Norte sob o comando da dinastia Kim. Compostos em 1947, os versos foram modificados três vezes, dançando ao sabor do humor do regime considerado o mais fechado do mundo.

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O sistema foi se aprimorando ao longo das últimas seis décadas, primeiro pelo próprio Kim Il-sung, que fundou a República Democrática da Coreia em 1948 e continuou a governá-la até 1994; depois por seus herdeiros e sucessores: Kim Jong-il, governante entre 1994 e 2011, e o atual líder, Kim Jong-un.

A base teórica do Juche foi o marxismo que se expandia pelo poderio militar da União Soviética no início da Guerra Fria na década de 1940. Não demorou, no entanto, para que Kim Il-sung desenvolvesse um ideário próprio.

“Por uma questão cultural de culto à personalidade existia uma necessidade de separar a ideologia norte-coreana do restante do pensamento comunista”, explica a professora da Universidade de São Paulo Yun Jung Im Park, nascida na Coreia do Sul. Era necessário que a Coreia do Norte tivesse, basicamente, seu próprio “livrinho vermelho”.

Foi assim que Kim Il-sung explicou o Juche em 1955: “Para fazer uma revolução coreana é preciso conhecer o povo coreano, a geografia coreana, a história coreana”. Foi o início de um flerte com o nacionalismo racial coreano, ideologia que prega a superioridade do povo local em relação aos vizinhos asiáticos.

“O nacionalismo étnico coreano surgiu em um período conturbado, em que a nação enfrentava o risco de desaparecer”, explica Park. Em 1910, a península da Coreia foi invadida pelo Japão, que começou um processo de aculturação. “A propaganda oficial japonesa dizia que os coreanos deviam se integrar. O nacionalismo étnico surge como contraponto”, diz a professora.

 (Foto: Catarina Bessel)

 

 

UM PEQUENO DEUS NA TERRA
O nacionalismo étnico coreano tem como mito fundador a lenda do senhor celestial Hwanin, que, por volta do ano 2 mil a.C., desceu dos céus sobre a montanha Baegdu e nela fundou a Cidade dos Deuses. Ali ele teve um filho, Dangun, que é considerado o ancestral de todos os coreanos. “Ele é uma espécie de grande avô”, brinca Park. “O mais curioso é que, apesar dessa origem tão antiga, relatos sobre Dangun como ‘pai’ da raça coreana só surgem no começo do século 20.” Ou seja, embora pareça milenar, a lenda de Dangun começou a ser propagada apenas durante o período da Ocupação Japonesa, que durou de 1910 a 1945.

Para o norte-americano Brian Reynolds Myers, professor de estudos internacionais na Universidade Dongseo, na Coreia do Sul, a influência japonesa no período foi tão importante que levou a intelectualidade coreana a se aproximar muito mais do fascismo japonês do que do marxismo-leninismo. Em seu livro The Cleanest Race: How the North-Koreans See Themselves (A Raça Mais Pura: Como os Norte-Coreanos se Veem, em tradução livre), Myers explica: “Nos anos 1920, a classe média coreana já usava preferencialmente o japonês em suas casas. O período de ocupação foi curto [apenas 35 anos], mas seus efeitos foram duradouros.”

Não à toa, várias expressões ligadas ao nacionalismo racial provêm do japonês, como minjok (“raça”). O próprio termo Juche é uma tradução japonesa do alemão subjekt, usado para definir o sujeito na filosofia. E, se é verdade que a influência cultural japonesa foi profunda durante esse período, é impossível negar que Kim Il-sung tenha sido contaminado. Afinal, o primeiro dos líderes da dinastia nasceu em Pyongyang em 1912, ou seja, dois anos depois do início da ocupação.

“A Coreia tem uma longa história de invasões. Essa ideia de uma raça coreana ‘excepcional’ surge não apenas como resposta a isso, mas como forma de defesa”, destaca Park. “Por muito tempo, a ideia de estrangeiro esteve relacionada com o mal da sociedade coreana.” Oficialmente, o Juche tem como base o ideal de que o “homem é dono de si e do mundo”, uma filosofia perigosa porque o nacional-socialismo alemão, por exemplo, também pregava uma superioridade do homem — do homem ariano.

Nesse contexto, é difícil não fazer um paralelo entre o Juche e o nacionalismo que controlou o Império do Japão entre a restauração Meiji de 1870 e o final da Segunda Guerra Mundial. “No Japão pós--restauração Meiji a elite construiu uma ideologia sobre a divindade do imperador, unificando uma série de crenças regionais no que se acostumou chamar de ‘xintoísmo de estado’”, explica o historiador Rogério Dezem, da Universidade de Osaka.

Um bom exemplo dessa semelhança é o “dia do sol”, feriado nacional norte-coreano que celebra o aniversário de Kim Il-sung. O Japão também passou  celebrar (e continua celebrando até hoje) o Dia do Imperador após a restauração Meiji — e também por lá o imperador recebeu seu status divino da “deusa do sol”.

Mas, apesar da coincidência (ou por causa dela), Dezem afirma que a criação da cultura norte-coreana foi bem menos espontânea do que a da cultura japonesa: “A Coreia do Norte usou de teorias estrangeiras para suportar uma ‘invenção da tradicional’, enquanto no Japão o resgate de aspectos nativos foi a base dessa filosofia de caráter nacionalista”. Já Yun Jun Im Park, da USP, ressalta que é provável que exista uma correlação entre a religiosidade e a figura dos Kim na Coreia. “A ideologia marxista é por definição ateia, mas esse tipo de crença não desaparece facilmente.”

 (Foto: Ilustração: Catarina Bessel)

 

 

PELA MIRA DO MEU FUZIL
Os três principais pontos da ideologia Juche são independência política, sustentabilidade econômica e autossuficiência militar — basicamente os pilares do isolacionismo que levou o país a ter um produto interno bruto 15 vezes menor do que o de seu vizinho do sul. Para um observador externo, o Juche parece uma espécie de versão mais estrita do stalinismo, com seu culto à personalidade e ao autoritarismo — mas poderia ser igualmente comparado a governos fascistas como o da Alemanha Nazista e o da Itália de Mussolini.

Uma das características mais peculiares e assustadoras do Juche — e talvez a que mais o aproxima de um ideário fascista — surgiu depois da queda da União Soviética, em 1992. É o chamado songun (literalmente “primazia miliar”), que levou o regime a desenvolver um artefato nuclear e a manter o maior exército proporcional à população do mundo, com 47 tropas ativas para cada mil cidadãos.

Tudo isso em um país que vive em crônico desabastecimento. Segundo o Unicef, 57% da população sobrevive com menos calorias do que o suficiente para se manter saudável e um terço das crianças têm o seu desenvolvimento altamente comprometido pela fome.

Em texto publicado no site Solidariedade à Coreia Popular, Gabriel Gonçalves Martinez, presidente do Centro de Estudos da Ideia Juche no Brasil, resumiu assim o songun: “Os princípios da ideia songun são os mesmos da Ideia Juche. Sendo uma ideia política que prioriza os assuntos militares, ela acredita que a revolução se forja, avança e se concretiza mediante o fuzil”.

Mesmo depois de inúmeras tentativas, Martinez não respondeu à reportagem da GALILEU, bem como os demais membros de seu grupo de estudos. A embaixada da Coreia do Norte no Brasil também não respondeu aos pedidos de entrevista.

“Há ainda um grande tabu entre os coreanos de ambos os lados em falar sobre determinados assuntos”, afirma a professora Park. “Há, por exemplo, norte-coreanos que estudam em São Paulo, mas eles vivem escondidos, pois é determinação do governo da Coreia do Sul que seus cidadãos delatem a atividade de norte-coreanos.”

 (Foto: Ilustração: Catarina Bessel)

 

 

100% RAÇA
Apesar de o mundo viver hoje a verve do multiculturalismo, com cidades globais como Nova York, Londres e São Paulo fervilhando de sotaques e idiomas, a questão da “raça” ainda é proeminente na sociedade coreana, tanto no norte quanto no sul. Em uma pesquisa feita em 19 países, a BBC perguntou qual era o fato mais importante para a afirmação da identidade cultural. A Coreia do Sul foi o país onde o maior número de entrevistados respondeu “raça”: 23% do total.

“Os coreanos afirmaram aprender na escola que eles são uma raça pura”, conta a antropóloga Lineimar Pereira Martins, em seu livro O Mito da Raça Pura, em que relata sua vida na Coreia do Sul. “Para alguém que veio do Brasil, um país que preza pela miscigenação, foi um choque grande.”

Park concorda com a avaliação de Martins: “No Brasil há, ao menos desde a década de 1950, uma ideologia de superioridade pela miscigenação. Na Coreia é o contrário. Por isso, muitas vezes o coreano sofre preconceitos no Brasil por ser ‘fechado’”, explica.

Myers vai além: “É inútil colocar esse conflito no mesmo paradigma da Guerra Fria. Essa ditadura não vai cair pelos jeans, porque é impossível fazer uma subversão da ideologia de raça apenas com filmes de Hollywood.”

COREIA ÀS ARMAS

 (Foto: Catarina Bessel)

 

 

Direita, volver
Desde 1984, a Coreia do Norte já realizou mais de 100 testes com mísseis balísticos. Sob o comando de Kim Jong-un, no poder desde 2011, o país intensificou a política militar: foram mais de 80 testes com mísseis. 

 (Foto: Catarina Bessel)

 

De olho no quintal
Segundo o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, o país pode desenvolver um míssil intercontinental capaz de atingir o solo norte-americano até 2027.

 (Foto: Catarina Bessel)

 

Sete trombetas
O país possui uma bomba atômica e já tem tecnologia para bombardear os vizinhos Coreia do Sul e Japão, ambos rivais históricos — no Japão, existe até uma sirene de alerta para avisar a população sobre um possível ataque.

 (Foto: Catarina Bessel)

 

Ir ou não ir
Desde 1957, por proteção, os EUA mantêm 28 mil homens na Península da Coreia. Kim Jong-un diz que vai parar os testes se os norte-americanos retirarem as tropas — uma decisão parecida causou a Guerra da Coreia, em 1950.

 (Foto: Catarina Bessel)

 

Quer pagar quanto?
A Coreia do Norte é o país que mais gasta com as forças armadas em relação ao PIB. Foram cerca de US$ 4 bilhões em 2016, ou 22% do PIB. Mas são despesas consideradas nanicas: o Brasil, por exemplo, gasta US$ 22 bilhões.

 (Foto: Catarina Bessel)

 

Amizade verdadeira
A força dominante na política é o Partido dos Trabalhadores da Coreia. Apesar disso, a Assembleia Popular Suprema (o Congresso de lá) tem outros dois partidos: o Social-Democrata e o Chondoísta. Os três fazem parte da mesma coalizão, a da Reunificação da Coreia.

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