A ascensão da homeopatia
Goiás enfrentou a pior epidemia de dengue de sua história no ano passado, com um aumento de 563% nos casos da doença em relação a 2012. Mas, em 25 municípios, houve uma queda de até 65% nos registros de novas infecções. A razão para o descompasso estaria em duas gotinhas de um complexo homeopático, distribuídas em postos de saúde a 200 mil pessoas dessas cidades. O remédio a conta-gotas não evita a infecção, mas reduz os sintomas ao ponto de o infectado nem perceber que contraiu o vírus. Os resultados nada homeopáticos da ação, liderada pela Secretaria Estadual de Saúde, levaram outros 75 municípios a aderir à campanha no final do ano passado. Em 2014, moradores de cem cidades goianas terão à disposição as gotinhas quatro vezes ao ano. “Como não têm contraindicação, todo mundo pode tomar, incluindo bebês e gestantes”, diz o médico Nestor Furtado, diretor-geral do Hospital de Medicina Alternativa, de Goiânia, onde é feita a medicação. Outra vantagem é o custo: um frasco com 300 doses custa R$ 1,60, menos que um cafezinho.
Outros locais, como São José do Rio Preto, em São Paulo, e Macaé, no Rio, também distribuíram a medicação contra a dengue, desenvolvida pelo homeopata pediátrico Renan Marino, professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto.
Marino foi o primeiro a lançar a ideia. Em 2001, uma ação na cidade paulista deu o medicamento a 20 mil pessoas de um dos bairros com mais focos do mosquito e ajudou a derrubar em 80% o registro de novas infecções – sem nenhum de dengue hemorrágica. O mesmo ocorreu em Macaé, que reduziu em 62% os casos de dengue entre 2007 e 2009.
São José do Rio Preto voltou a fazer a campanha em 2007, mas o secretário de Saúde do Estado na época entrou com um pedido na Justiça para cancelar o mutirão porque não havia comprovação científica da eficácia das gotinhas. A campanha cessou, mas a população não parou mais de recorrer ao homeopático antidengue, aprovado pela Anvisa um ano depois da polêmica. Testes feitos com o composto mostraram que o número de plaquetas em ratos aumentou três vezes após seu uso. Plaquetas em alta ajudam na coagulação sanguínea, o que explica o efeito na prevenção da dengue hemorrágica.
A história do controverso remédio contra a dengue ilustra as dificuldades que a homeopatia enfrenta até hoje. Apesar de ser o segundo sistema médico mais usado do mundo, perdendo apenas para a alopatia, ela ainda luta para dar aval científico aos seus princípios pouco convencionais. A medicina tradicional combate uma doença com remédios que provocam o oposto dos sintomas. A depressão é tratada com antidepressivos, uma inflamação com anti-inflamatórios – e assim por diante. Já a homeopatia usa substâncias que causam os mesmos efeitos da doença. A beladona, por exemplo, é uma planta que causa febre alta e é receitada para tratar… febre alta. “Quando uma doença se instala, é sinal de que o sistema imunológico não consegue mais reconhecer a doença como um inimigo”, diz o médico homeopata Marcus Zulian Teixeira, professor de Medicina da USP. “A homeopatia dá ao paciente uma doença artificial para tratar uma doença real. É como dar um tapa no organismo e dizer: “Acorda!”.
Mas, para evitar que a febre piore muito – e o tapa vire um nocaute -, a beladona e os outros princípios ativos da homeopatia são diluídos em água. Na homeopatia, a diluição é a alma do negócio – e, para os críticos, seu grande problema. Samuel Hahnemann, fundador da homeopatia, criou um sistema de diluição que consiste em diluir uma gota do princípio ativo em 99 gotas de água, sucessivas vezes. A diluição final é representada pelo número de centesimais hahnemannianas (CH). Os remédios homeopáticos costumam estar a 30 CH, para não agredir o paciente. O problema é que, segundo as leis da química, uma diluição dessas não contém sequer uma molécula do princípio ativo. A diluição de qualquer matéria a mais de 12 CH é suficiente para que a solução vire pura água. E agora?
O mistério da água
Bom, a explicação sobre o funcionamento dos remédios homeopáticos pode estar justamente na água. Os homeopatas acreditam que os compostos homeopáticos ainda guardariam uma “memória” do princípio ativo nela diluído. E alguns experimentos dão suporte a essa hipótese. Um trabalho publicado em 2003 na revista científica Physica A mostrou que, ao ser congelado, um copo com cloretos de sódio e de lítio diluídos até quase desaparecerem guardava diferenças ao ser comparado à água pura. A avaliação foi feita com uma técnica de termoluminescência, que detecta a estrutura de substâncias sólidas. Em 2005, uma pesquisa na Nature confirmou o achado, mas revelou que a água só armazena as propriedades de substâncias diluídas por 50 femtossegundos (1 femtossegundo equivale a 1 bilionésimo de milionésimo de segundo). Ou seja, a memória da água seria tão curta que nem poderia ser chamada assim.
Mas a falta de uma explicação sobre seu mecanismo de ação não ofusca a popularidade da prática. No Brasil, entre 2007 e 2012 houve um aumento de 10% nas consultas homeopáticas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), oferecidas em mais de 400 postos no País. E a descoberta publicada na Nature também não sepultou as esperanças de provar o mecanismo de ação da homeopatia. Um novo estudo em 2009 mostrou que, em alguns casos, a memória da água pode durar um pouco mais: 48 horas.Mas não há consenso. “A relevância desses estudos para provar os alegados efeitos da homeopatia permanece duvidosa”, afirma o médico Edzard Ernst, pesquisador da Universidade de Exeter, especializado em investigar a eficácia das terapias alternativas.
A falta de provas do efeito das gotas diluídas leva à conclusão de que o benefício da homeopatia é apenas psíquico, ou seja, placebo. “A melhora dos pacientes tende a estar relacionada a efeitos não específicos, como placebo, a história natural da doença ou a regressão espontânea dos sintomas”, diz Ernst. Em 2005, uma revisão de mais de 200 estudos concluiu que o efeito dos remédios homeopáticos não era superior ao de comprimidos de farinha. A revelação levou o The Lancet a declarar “O fim da homeopatia”. Foi um dos golpes mais duros que a prática recebeu desde 1796, quando Hahnemann lançou seu primeiro texto sobre o assunto.
Mas não demorou muito para a pesquisa ser criticada até por quem não simpatiza com a prática. A análise reuniu 110 estudos em homeopatia, mas excluiu 102. Entre os únicos oito incluídos na revisão, os remédios homeopáticos foram reprovados. Os autores da revisão não deixaram claros os critérios usados para analisar menos de 10% do total de estudos e fazer uma conclusão tão demolidora. Em 2011, o governo da Suíça chegou ao resultado oposto: os medicamentos ultradiluídos têm, sim, resultados superiores ao placebo em vários casos, especialmente no tratamento de infecções respiratórias e alergias. Dos 29 estudos avaliados sobre o tratamento dessas doenças, 24 mostraram resultados favoráveis à homeopatia.
No Brasil, o médico homeopata Sergio Furuta, pesquisador da Unifesp, testou a homeopatia em crianças na fila de espera para a cirurgia de remoção das amígdalas no Hospital São Paulo. Ele dividiu as 40 crianças em dois grupos. Metade tomou placebo, a outra metade, homeopatia. Em quatro meses, cerca de 70% das crianças tratadas com homeopatia saíram da fila, porque pararam com as amigdalites de repetição. No SUS de Jundiaí, no interior de São Paulo, a homeopatia foi comparada ao Prozac no tratamento da depressão. Os pacientes que receberam compostos homeopáticos apresentaram melhora semelhante aos tratados com o antidepressivo em oito semanas, sem os temidos efeitos colaterais – como perda de libido, ganho de peso ou insônia. O mais interessante foi que cada paciente recebeu um remédio homeopático diferente. É que, ao prescrever a medicação, o homeopata leva em conta sintomas que a medicina convencional costuma ignorar e os inclui na formulação do composto. “A depressão faz parte de um conjunto alterado de sintomas. Enxaqueca, fadiga, dor e outros sinais acabam influenciando no quadro depressivo”, diz o médico homeopata Ubiratan Adler, que conduziu o estudo.
A maior atenção do médico ao paciente é a principal diferença da homeopatia para o modelo médico convencional e suas consultas vapt-vupt. Mas se torna também um problema na hora de desenvolver estudos controlados. “A homeopatia é muito mais eficaz quando é feita de modo individual porque seu foco é o doente, não a doença. Mas os modelos de pesquisa costumam dar um mesmo composto homeopático a um grupo de voluntários indiscriminadamente. Assim, fica bem mais difícil provar a sua eficácia”, diz o pesquisador Marcus Teixeira, da USP.
As longas consultas são um ponto a favor da prática e, em alguns casos, tão ou mais poderosas do que as gotinhas ultradiluídas. Em 2011, homeopatas do Reino Unido concluíram que as consultas, e não os remédios, estavam associados à melhora de pacientes com artrite. O achado faz sentido: quem não se sente melhor depois de ser interrogado e ouvido horas a fio por um médico? A novidade é que esse conhecido efeito placebo das consultas não é trivial. “Os rituais terapêuticos ativam no cérebro as mesmas moléculas acionadas pela maioria das drogas”, disse o cientista Fabrizio Benedetti, que investiga a neurobiologia do efeito placebo, à revista da Universidade Harvard. Logo, a homeopatia também potencializa o poder da crença. Há mais de 200 anos, o criador da homeopatia considerava as idiossincrasias de cada paciente fatores de primeira ordem na prescrição de um tratamento.
Seja como for, é cada vez mais comum ter bons resultados ao se associar a homeopatia com a alopatia. “A alopatia é rápida nos casos agudos, e a homeopatia é especialmente útil nos casos crônicos, em que a doença sempre volta após o tratamento alopático”, diz Teixeira. Somados, os benefícios das duas são maiores que o de cada uma sozinha.
A homeopatia
Origem
Criada pelo alemão Samuel Hahnemann no século 18 com base no princípio da semelhança descrito por Hipócrates no século 4 a.C..
Principais indicações
Tem eficácia comprovada para diversos tipos de problema, como alergias, diarreia infantil, dengue, enxaqueca e fibromialgia, transtornos de atenção (TDAH) e prevenção de infecções respiratórias.
Contraindicações
Não existem.
Teoria polêmica
A homeopatia é baseada na “lei dos semelhantes”: uma substância que causa determinado sintoma em uma pessoa saudável pode curar esses mesmos sintomas em um doente se for ingerida em doses muito pequenas.
Por que funciona
Segundo os defensores da prática, as diluições e agitações sucessivas serviriam para retirar o efeito danoso das substâncias usadas nos compostos homeopáticos, deixando restar apenas uma dose infinitesimal, que serve para alertar o sistema imunológico do paciente.
Por que não funciona
Críticos da homeopatia contestam a hipótese de que a água teria a capacidade de reter uma “memória” das substâncias nela diluídas. Até agora, a ciência não conseguiu reproduzir esses testes nem provar como essa suposta capacidade de reter informação tem algum efeitono organismo.
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