Os arquivos secretos da CIA
A manhã nasceu tranquila. Mas, às 7h48, uma nuvem com mais de 350 aviões japoneses se materializou do nada e bombas começaram a chover sobre a base de Pearl Harbor. Naquele 7 de dezembro de 1941, os americanos levaram a maior rasteira do século – e aprenderam, da forma mais dolorosa possível, a importância da espionagem. Surgiu ali a ideia de criar uma superagência de inteligência, capaz de descobrir os segredos e antecipar as ações de todos os outros países, fossem amigos ou inimigos dos EUA. Mas isso só aconteceria após o fim da 2a Guerra Mundial, em 1947, quando os americanos fundaram a Central Intelligence Agency. De lá para cá, a CIA se tornou conhecida pelo poder sinistro, capaz de influir nos destinos do planeta. Uma impressão ruim, que a agência tentou desfazer com um gesto de transparência: liberou na internet 12 milhões de páginas de documentos secretos, que revelam em detalhes suas ações até a metade da década de 1990 (os mais recentes permanecem confidenciais). Revelamos alguns desses episódios, que tiveram consequências profundas para o Brasil e outros países, ao longo desta reportagem. Mas, para compreendê-los, primeiro é preciso entender a história da CIA – que já começou com um segredinho.
A mão invisível
A sede da CIA fica na cidade de Langley, no Estado da Virgínia, onde trabalham 21.500 pessoas. Esse número não inclui espiões nem informantes, só os funcionários “oficiais”: advogados, programadores, engenheiros, economistas, especialistas em relações internacionais e comunicação, tradutores. Todos passam por três entrevistas (uma com polígrafo, para ver se a pessoa está falando a verdade), além de checagens do estado de saúde, do histórico familiar e laudos psicológicos detalhados.
Oficialmente, a agência tem dois objetivos: reunir informações sobre outros países e defender os segredos dos EUA, desmascarando e caçando os espiões estrangeiros. Mas há um terceiro objetivo, que nunca foi reconhecido oficialmente: realizar ações secretas em outras nações. “Na lei que criou a CIA, esse objetivo não era mencionado. Mas estava implícito para o presidente e o Congresso que a agência iria interferir no cenário político de outros países”, afirma o sociólogo americano David Barrett, autor de cinco livros sobre a agência. Ou seja, derrubar e empossar governos. A CIA conseguiu a primeira vitória já em 1948, na Itália. Ela apoiou financeiramente a Democracia Cristã, que venceu as eleições gerais e se manteve influente até os anos 1980. A ideia era evitar que o país fosse dominado pela esquerda local, de modo a conter a influência da URSS. A mesma coisa aconteceu no Japão, onde os americanos financiaram secretamente uma série de políticos, especialmente o primeiro-ministro Nobusuke Kishi, um ex-criminoso de guerra que governou o país entre 1957 e 1960.
O envolvimento não era meramente político. Em vários países da Europa, a agência financiou jornais, panfletos e programas de rádio que defendiam os interesses dos EUA e seus aliados. Na Grécia, a ação foi mais longe: a partir de 1947, a CIA encheu o país de dinheiro, armas e espiões e transformou Atenas em uma de suas maiores centrais. “A CIA teve um papel crucial para manter a Europa longe do comunismo”, afirmam Victor Marchetti e John Marks no livro CIA & The Cult of Intelligence (sem versão em português).
Na América Latina, as coisas deram mais certo ainda. Em 1954, a CIA se instalou na Guatemala e dali seguiu para Panamá, República Dominicana, Guiana, México, Honduras, Uruguai, Chile e Brasil – onde a agência trabalhou para derrubar o governo João Goulart, em 1964. O então presidente John Kennedy e o embaixador americano no País, Lincoln Gordon, apoiavam o golpe militar, e queriam usar os tentáculos da CIA para se aproximar da ditadura brasileira. “A agência pode deixar claro, discretamente, que nós não somos necessariamente hostis a nenhum tipo de ação da parte dos militares, desde que seja contra a esquerda”, afirma Kennedy num documento confidencial da época.
Em outros pontos do mundo subdesenvolvido, os agentes americanos também foram muito bem-sucedidos. Ajudaram a eleger presidentes ou derrubar governos no Vietnã do Sul, no Congo, no Laos, na Tailândia. É verdade que, em alguns casos, depois de vitórias inquestionáveis, a história se voltou contra a CIA: os agentes americanos mudaram o governo do Irã em 1953, mas foram surpreendidos por um golpe liderado pelo aiatolá Khomeini em 1979. O presidente do Vietnã do Sul, Ngo Dinh Diem, que chegou ao poder com apoio direto da agência em 1955, acabou assassinado em 1963 com o apoio da própria CIA, que apoiou os planos golpistas do general Le Van Kim. Mas isso desaguou na Guerra do Vietnã, que durou 19 anos e provocou a morte de quase 60 mil soldados americanos.
No Afeganistão, as coisas também tiveram um desfecho surpreendente. A CIA forneceu armas e dinheiro a forças rebeldes, que resistiram à invasão do país pela União Soviética. Só que, quando os russos foram embora, aqueles mesmos rebeldes fundaram o Talibã – que é inimigo dos EUA, e financiou os ataques de 11 de setembro de 2001. “A guerra secreta contra a União Soviética no Afeganistão deu origem a um inimigo muito mais letal, um grupo fundamentalista radical que foi basicamente criado pela própria CIA”, afirma o historiador americano John Prados, autor do livro The Secret Wars of the CIA (sem versão em português).
A agência financiou a tentativa de invasão de Cuba, em 1961, mas não teve sucesso. Ela perdeu todos os embates contra Fidel – a não ser no Congo, em 1965, onde milícias financiadas pelos EUA derrotaram os soldados cubanos, que eram comandados por Che Guevara. Derrotado, Che foi se esconder na Bolívia – onde foi caçado por Félix Rodrigues, um exilado cubano e agente da CIA. Acabou morto em 1967.
Incrivelmente, a CIA não sabia direito o que se passava em seu principal alvo: a URSS. Em 1953, foi pega de surpresa pela morte de Stálin – e não tinha informações sobre seu sucessor, Nikita Kruschev. Outro deslize ocorreu em 1960, quando um avião espião foi abatido ao sobrevoar a URSS. O piloto, Gary Powers, foi capturado e confessou que trabalhava para a CIA. O incidente deu início à fase mais tensa da Guerra Fria. Mas foi o marco zero dos programas de espionagem aérea da agência, que estão operando até hoje – com satélites e drones.
A CIA sempre investiu muito em tecnologia. Inventou câmeras fotográficas e gravadores minúsculos, e até robôs no formato de peixes para investigar a posição de submarinos inimigos. A partir da década de 1990, não se contentou em apenas espionar – e deu início aos ataques com drones armados, os Predator, que a agência opera em parceria com a Força Aérea dos EUA. Eles já realizaram mais de 2 mil missões no Oriente Médio. “O [então] presidente Obama foi um dos maiores entusiastas dessa solução, que envia fotos e vídeos em tempo real e ataca com eficácia sem colocar em risco a vida de militares americanos”, afirma o sociólogo David Barrett.
Ao mesmo tempo em que crescia e ganhava poder, a CIA enfrentava oposição em seu próprio país. Nos anos 1970, o Senado descobriu uma série de ações ilegais da agência. “Um dos erros mais graves foi investigar cidadãos americanos, em território americano. A CIA fez isso a mando de vários presidentes. Kennedy mandou investigar jornalistas, Johnson e Nixon pediram detalhes sobre ativistas”, afirma David Barrett. A coisa explodiu com o escândalo Watergate, em 1972, em que Nixon usou ex-funcionários da agência para espionar adversários políticos.
Outro baque veio em 2001, quando o setor de inteligência americano sofreu o maior revés desde Pearl Harbor. A CIA foi criticada por não conseguir prever os ataques do 11 de Setembro e, pela primeira vez em sua história, passou a responder a uma autoridade superior: a Diretoria de Inteligência Nacional (DNI), que manda na agência. Com isso, a CIA perdeu prestígio. Mas ainda é (muito) poderosa. Entre 2003 e 2006, administrou seu próprio centro de interrogatórios dentro do complexo de Guantánamo. Hoje, segundo uma investigação do Senado dos EUA, mantém prisões secretas no Afeganistão e em mais de 30 países, incluindo Austrália, Suécia e África do Sul.
Nos últimos anos, ela voltou seus esforços para a espionagem digital, com sucesso: em 2010, participou da criação do vírus Stuxnet, que infectou e queimou as máquinas de enriquecimento de urânio do programa nuclear iraniano.
A CIA usa seus hackers como soldados, mas também não está a salvo de ataques. O mais embaraçoso aconteceu em 2015. O diretor da agência, John Brennan, teve a conta de e-mail invadida, e as mensagens, publicadas na internet. Numa delas, ele se queixava das críticas feitas à agência, e dizia: “Certas coisas precisam ser feitas em segredo”. Dessa vez, a CIA não conseguiu.
Documentos revelados
Os pontos mais surpreendentes das 12 milhões de páginas confidenciais liberadas pela CIA na internet.
UM TÚNEL (NÃO MUITO) SECRETO
maio/1955
O relatório da CIA descreve um túnel de 450 m construído pelos EUA e pela Inglaterra sob Berlim Oriental, controlada pela URSS. A rede de telefonia da cidade era formada por cabos subterrâneos, e o túnel permitia alcançá-los e grampeá-los. O esquema funcionou por quase um ano, e rendeu 40 mil horas de grampos. Só havia um problema: como a própria CIA descobriu depois, os russos sabiam de tudo desde o início.
ABRE O OLHO, JANGO
8/fevereiro/1963
“Segundo o presidente Goulart, a URSS se ofereceu para construir uma usina hidrelétrica em Sete Quedas, perto da fronteira entre Brasil e Paraguai”, afirma o documento da agência, que manifesta preocupação com a “presença de grande número de soviéticos, por muitos anos, na região do Rio Paraná”. Um ano depois, João Goulart seria deposto – no golpe militar de 1964, que teve o apoio dos Estados Unidos.
URI GELLER É REAL?
agosto/1973
“Geller demonstrou sua habilidade paranormal de forma convincente e inequívoca”, afirma o relatório sobre o israelense Uri Geller, famoso por entortar garfos e realizar outros feitos difíceis de explicar. Ele foi convidado pela CIA para participar de uma semana de experiências. E teria conseguido, entre outras coisas impressionantes, visualizar e desenhar imagens que estavam penduradas numa sala ao lado.
CONTROLE DA MENTE
várias datas
Há muitos documentos da agência sobre o MK-Ultra, programa em que a CIA tentou desenvolver técnicas de lavagem cerebral e controle da mente. A agência fez experiências com LSD e outras substâncias. Oficialmente, o programa foi extinto em 1973, depois de vazar para a imprensa. Mas a CIA não abandonou o tema: produziu um relatório, em 1980, discutindo a viabilidade de “técnicas de perturbação remota”, como “telecinese”.
OBSESSÃO POR FIDEL
várias datas
A CIA elaborou centenas de documentos sobre Fidel Castro, incluindo planos para sabotá-lo e matá-lo. A principal operação ocorreu em setembro de 1960, quando a agência ofereceu dinheiro para que a Máfia americana mandasse alguém matar Fidel em Cuba, pondo veneno em sua comida. Depois de várias tentativas, a missão foi abortada – e a Máfia ameaçou vazar as informações para a imprensa.
O CASO IRÃ-CONTRAS
23/abril/1987
O então diretor da CIA, Robert Gates, instrui os funcionários a não destruir os registros da operação Irã-Contras. Nessa operação ilegal e secreta, que foi executada em 1985 (e acabara de vir à tona), a CIA vendeu clandestinamente armas ao Irã, para ajudá-lo a vencer a guerra contra o Iraque, e usou o lucro desse negócio para financiar os “Contras”, grupo que tentava derrubar a Frente Sandinista, organização de esquerda que governava a Nicarágua.
EM BUSCA DE ETS
1952 a 1996
A agência investigou detalhadamente suspeitas de OVNIs na Alemanha, na URSS, nos EUA, na Inglaterra e na Lituânia – o episódio mais recente, de 1996. Policiais tentaram se aproximar de um objeto que havia caído do céu. “Quando chegaram a 50 metros, a esfera se moveu e decolou rapidamente.” A CIA dava bastante atenção a possíveis discos voadores porque considerava que, se existissem, eles poderiam ameaçar a segurança dos Estados Unidos.
TORTURA COM OUTRO NOME
2004
O relatório fala sobre o “suposto uso” de tortura no interrogatório de acusados de terrorismo. Depois de afirmar que a CIA não encoraja ou endossa nenhum tipo de tortura, o documento descreve “técnicas aprimoradas” que poderiam ser usadas – como o afogamento simulado (waterboarding). Finaliza dizendo que “não há indícios suficientes” para processar nenhum dos supostos torturadores. Em 2006, o afogamento simulado acabou proibido.
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