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“As pessoas públicas que rejeitamos dizem muito sobre nosso momento histórico”

 (Foto: Divulgação)

 

Na manhã de 8 de novembro de 2016, Anne Helen Petersen acordou empolgada. Quando o dia terminasse, os Estados Unidos teriam um novo líder: uma mulher. No caminho do local de votação, o clima era de celebração: crianças fantasiadas de Hillary Clinton acompanhavam os pais nas ruas e estranhos cumprimentavam uns aos outros, já comemorando o resultado que parecia tão óbvio.

Algumas horas depois, o clima era outro, cheio de tensão. Em uma reviravolta, o empresário Donald Trump foi eleito presidente do país. Negócios de lado, ele ganhou fama no início dos anos 2000 ao apresentar o reality show The Apprentice (uma versão gringa de O Aprendiz) e chamou bastante a atenção pelas diversas afirmações xenofóbicas e misóginas que deu durante a campanha presidencial.

Naquela noite, Petersen abriu um documento em seu computador e digitou o título “Este é o tanto que os Estados Unidos odeiam as mulheres”. O texto, que foi publicado no dia seguinte no site Buzzfeed, aborda as noções estereotipadas e conservadoras que os norte-americanos têm do papel da mulher na sociedade.

O assunto não é estranho à jornalista: ph.D. em estudos midiáticos com ênfase em cultura da celebridade, ela vinha estudando as formas pelas quais diferentes figuras públicas quebram esses padrões. Em seu novo livro, Too Fat, Too Slutty, Too Loud — The Rise and Reign of the Unruly Women (Gorda Demais, Piranha Demais e Barulhenta Demais — Ascensão e Reino da Mulher Indomável, em tradução livre), sem previsão de publicação no Brasil, Petersen analisa como a presença na mídia de figuras como a atleta Serena Williams e a ex-candidata Hillary Clinton molda o que significa ser uma mulher atualmente nos Estados Unidos.

“Uma revolta em relação a essas mulheres vinha se desenvolvendo, mas foi algo que só entendemos após a eleição, quando ficou claro que existe uma rejeição em relação a elas”, afirma Petersen. “Há momentos na história nos quais temos uma ideia abrangente e inclusiva do que significa ser uma mulher, e de repente ocorre um grande recuo. E isso parece ter acontecido recentemente.”

Em meio a sua mudança de Nova York para o estado de Montana, a jornalista conversou por telefone com a GALILEU sobre a cultura que, de tão obcecada com celebridades, elegeu uma como presidente, e sobre o que o atual momento sociopolítico e cultural significa para as ditas mulheres indomáveis. Resumindo? Elas são mais necessárias do que nunca.

O que fez você querer estudar como a cultura de celebridades influencia o comportamento e o pensamento da sociedade americana?

Muitas pessoas acreditam que acompanhar a carreira de celebridades e ler fofocas sobre elas são coisas idiotas, e gosto de mostrar que não é o caso. Acredito que as celebridades que são populares em um determinado momento e a maneira como reagimos a elas são as melhores formas de entender a fase pela qual a sociedade está passando: o que significa ser uma mulher, gay ou negro naquele momento cultural. Ao estudar celebridades, é possível identificar o que deixa as pessoas ansiosas, empolgadas ou desconfortáveis.

Você pode dar um exemplo dessa representação ao longo da história?

Sim, o exemplo que mais gosto é Marilyn Monroe. O motivo pelo qual ela se tornou popular na década de 1950 foi que a imagem dela equilibrou ideias que estavam vigentes na cultura norte-americana naquele momento: a de liberação sexual e a de que o sexo não era uma coisa suja, e sim natural. Era importante falar de sexo naquela época, mas do tipo certo de sexo.

Quem você acha que é um exemplo que representa o momento cultural atual?

Acho que a Angelina Jolie é um bom exemplo. Ela se afastou do estrelato nos últimos anos e mostra que tem coisas mais importantes para fazer. Em vez de frequentar eventos de moda ou se preocupar com redes sociais, ela cuida de negócios, tenta resolver problemas globais e dá palestras em universidades conceituadas. E o fato de ela ter uma família multicultural e engajada vai ao encontro da noção de globalização, que vem se fortalecendo desde o início da última década.

Como você disse, as pessoas tendem a encarar a cultura de celebridades como algo fútil. Ainda assim, todo mundo acompanha algum artista, sobre quem sabe tudo. Por que as pessoas evitam pensar criticamente sobre esse assunto?

Outro dia mesmo eu estava pensando sobre isso, sobre como as pessoas ficam obcecadas com atletas e querem saber tudo sobre eles. Mas ser um fã de esportes é um atributo considerado masculino, então esse gosto não é visto como algo fútil. E até mesmo a forma pela qual as pessoas encaram a política pode ser vista como parte da cultura de celebridades, particularmente agora, com o nosso presidente, Donald Trump, que é uma. Tento fazer as pessoas repensarem essa ideia de diferentes maneiras: não é fofoca de celebridades, e sim no que estamos interessados como sociedade, sobre o que estamos falando e o que é considerado relevante no momento.

Em uma passagem do seu livro, você escreve sobre como quem seguimos e admiramos pode revelar muito sobre quem somos…

E também sobre quem não queremos ser. As pessoas públicas que rejeitamos dizem muito sobre o momento histórico pelo qual a sociedade passa.

Você teve a ideia de escrever o livro há dois anos, quando o cenário sociopolítico e cultural americano era outro. Como o conceito se transformou até chegar ao resultado final?

Na época, minha editora perguntou quais eram as pessoas sobre as quais eu gostaria de escrever. Fiz uma lista e percebi que todos os nomes eram de mulheres com uma característica em comum: elas eram indomáveis…

O que isso quer dizer?

Elas eram mulheres que são “demais”: falantes demais, que ocupam espaço demais, usam maquiagem demais. Elas ultrapassam barreiras que são difíceis de estabelecer. Eu não saberia dizer, por exemplo, o que faz uma mulher parecer “demais”, mas consigo identificá-la quando a vejo, pois ela causa um certo incômodo. Comecei a pensar sobre quem estabelece esses padrões. No início da década de 1990, a crítica Kathleen Rowe cunhou o termo “mulher indomável” ao escrever sobre Roseanne [série estrelada por Roseanne Arnold, comediante que quebrava todos os estereótipos de feminilidade: era gorda, falava alto e não tinha medo de expressar suas opiniões], e percebi que as mulheres sobre quem eu queria escrever também eram indomáveis, mas encontraram uma forma de exercer isso sem serem rejeitadas em seus campos, fossem eles a política, o cinema ou o esporte.

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Quem define essas ideias do que significa ser uma mulher? A mídia, a sociedade ou ambas?

Alguém me perguntou outro dia: “Isso é culpa dos homens?” [risos]. Claro, mas também das próprias mulheres e da mídia. Não existe um comitê escondido atrás de uma parede secreta decidindo o que é ideologia e o que significa ser uma mulher. O feminismo é um trajeto no qual se dá dois passos para a frente e um para trás. É ambíguo e está sempre mudando. Há momentos na história nos quais temos uma ideia abrangente e inclusiva do que significa ser uma mulher, e de repente ocorre um grande recuo. E isso parece ter acontecido recentemente.

O resultado da eleição presidencial dos Estados Unidos mudou o significado de “mulheres indomáveis” de alguma forma?

Uma revolta em relação a essas mulheres vinha se desenvolvendo, mas foi algo que só entendemos após a eleição, quando ficou claro que existe uma rejeição em relação a elas. Séries que foram ao ar antes da eleição e que abordavam o que significa ser uma mulher moderna, como Broad City e Girls, por exemplo, agora parecem ser de outro universo. Parece haver uma resistência em relação às ideias que elas propagavam. Os Estados Unidos estão tentando descobrir quais são as ideologias que querem que representem o que significa ser uma mulher neste momento, e não acho que sejam as ideias propagadas por feministas brancas, que é o motivo pelo qual não temos uma artista branca fazendo muito sucesso atualmente.

A partir de agora, para fazer sucesso, filmes e discos precisam ter um tom de crítica? Artistas têm de expressar suas visões políticas para serem relevantes?

É uma boa pergunta. Os fãs esperam que seus ídolos expressem mais opiniões e sejam engajados com política. Os artistas, principalmente mulheres mais novas, precisam decidir que tipo de figura pública querem ser. Quem decidir não se manifestar sobre assuntos políticos não será mais interessante. Ao mesmo tempo, quem decidir fazê-lo vai dividir opiniões. É claro que nem toda artista tem o luxo de escolher essa última opção. Alguém como Scarlett Johansson, por exemplo, que é a estrela das maiores produções cinematográficas dos últimos anos, pode participar da Marcha das Mulheres em Washington e falar publicamente sobre aborto sem se preocupar, porque isso não prejudicará sua carreira. Mas nem todas têm essa mesma sorte.

No livro, você dedica um capítulo inteiro à candidata democrata Hillary Clinton, que perdeu a eleição presidencial para Donald Trump. Como o fato de ela ser “indomável” colaborou para esse resultado?

Hillary estava tentando ser uma mulher poderosa em público e não estava se desculpando por isso ou tentando ser menos poderosa. Nos Estados Unidos, para ser uma mulher no poder você tem que fazer essas concessões, mostrar que é uma líder importante, mas que não representa uma ameaça aos homens. Aos olhos de muitas pessoas, Hillary não se suavizou o suficiente. A voz dela demonstra isso: toda vez que ela abre a boca é um lembrete de que uma pessoa poderosa está falando em público. O que acontece quando uma mulher aumenta o tom de sua voz para falar para uma multidão? Isso é visto de forma negativa, há uma crença de que aquele não é o lugar dela. O mesmo não acontece com homens em tal situação.

Esse novo cenário político nos Estados Unidos, no qual as mulheres correm o risco de perder vários de seus direitos, vai fazer com que elas fiquem ainda mais indomáveis?

Isso [o novo momento político] fez com que muitas pessoas parassem de prestar atenção no que acham delas e se tornassem ativistas políticas. Muitas das mulheres que participaram da Marcha das Mulheres em janeiro deste ano nunca tinham se engajado politicamente antes. Não era necessariamente para ser uma grande ação política, mas acabou sendo. Foi o momento de as mulheres dizerem “olhem para nós, é nisso que acreditamos”. Para muitas mulheres, ultrapassar essa linha deixou-as mais próximas de se tornarem o que chamo de “indomáveis”. Há uma revolta contra essas mulheres, mas um número cada vez maior delas está se manifestando porque é necessário para resistir a Trump e ao que ele representa.

Qual é o próximo passo que as mulheres indomáveis tomarão?

Elas chegarão a um novo momento. Muitas das mulheres sobre quem escrevi no livro são brancas [das 11 mulheres que aparecem na obra, nove são brancas], e isso porque sempre foi mais fácil para mulheres brancas serem indomáveis. No futuro, mulheres que não são tão representadas, como negras, lésbicas e trans, terão mais oportunidades de serem rebeldes e provocativas. Estamos em um momento de mudança.

“Os EUA estão tentando descobrir quais são as ideologias que querem que representem o que significa ser uma mulher”

 (Foto: Divulgação)

 

 

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