O que diz a legislação e como funciona a prática do suicídio assistido
Era 7 de outubro de 2014 quando Anett Gräfe acordou cedo para buscar a mãe.
Jana estava internada em um centro de reabilitação havia mais de um ano depois de ter sofrido um acidente. Mãe e filha saíram do hospital, entraram no carro e percorreram mais de 200 quilômetros de Pforzheim, no sul da Alemanha, até Basileia, na Suíça. Quando chegaram, já estava tudo arranjado para que Jana recebesse auxílio para se matar.
Quatorze meses antes, a mulher de 63 anos voltava de uma viagem dirigindo quando sofreu um acidente na estrada que resultou em uma lesão na medula espinhal. Jana, que antes fazia caminhadas à beira do lago e trilhas na floresta, agora só conseguia mexer a cabeça. Em um corpo que não era mais seu, perdeu a vontade de viver e viu no suicídio assistido uma saída de emergência. Por isso, pediu ajuda à associação suíça Lifecircle, especializada em auxiliar pessoas que desejam acabar com a própria vida, e cruzou a fronteira.
Até 2015, não havia na Alemanha lei que regulasse o suicídio assistido — quando uma pessoa com desejo de morrer recebe ajuda para isso, mas é ela quem executa o ato de se matar. No entanto, como suicídio não é proibido, interpretava-se que o auxílio a ele tampouco poderia ser. Um paciente que quisesse morrer por motivos considerados plausíveis poderia receber ajuda de uma organização ou médico até o último gole do medicamento ou até a última injeção.
Porém, em novembro de 2015, o Parlamento alemão decidiu aprovar, por 360 votos a 233, o artigo 217 do Código Penal, que proíbe que o auxílio ao suicídio seja feito de forma “comercial” — a nova regra exclui parentes próximos que ajudem um ente querido a terminar com seu sofrimento. Um dos maiores receios do lado pró-proibição era a banalização da prática. “Imagine se existisse um serviço de morte assistida como um serviço de entrega de pizza ou corte de cabelo”, exemplifica a juíza Ruth Rissing-van Saan. Ela acredita que, se a prática institucionalizada fosse legalizada, pessoas idosas ou muito doentes poderiam encontrar nela um caminho mais fácil do que procurar o tratamento adequado e cuidados paliativos, ou até mesmo tomarem essa decisão sob influência de familiares ansiosos por se livrar de um “fardo”.
Mas o advogado Dieter Graefe, representante da organização alemã Dignitas Deutschland, diz que nunca observou nada parecido nos casos que aconselhou. “Normalmente os pacientes não querem nem contar para a família, pois têm medo que boicotem seu desejo de morrer.” Em geral, os parentes não querem perder alguém querido, como Anett não queria perder a mãe.
Entretanto, mesmo triste e com medo das possíveis consequências legais desconhecidas por ela na época, Anett aceitou a vontade de Jana. “Eu sabia que esse era o último desejo dela, e nós conseguimos nos despedir. Muita gente não tem essa chance em uma morte normal”, diz.
BRASIL E ALEMANHA
Apesar de a lei que proíbe o auxílio ao suicídio assistido na Alemanha ter sido apoiada pelo partido cristão, os principais argumentos que a ampararam não tinham nada a ver com religião. É o contrário do que acontece no Brasil, onde o debate sobre o assunto ainda engatinha justamente por conta de argumentos relacionados à espiritualidade.
Uma pesquisa feita pela Kaiser Family Foundation em parceria com a revista The Economist sobre como as pessoas encaram o fim da vida na Itália, nos Estados Unidos, no Brasil e no Japão mostrou que, para 83% dos brasileiros, a religião tem um papel central na forma como eles imaginam seu tratamento médico no fim da vida. No Japão, apenas 13% deram essa resposta. Cerca de 40% dos brasileiros também consideram mais importante morrer em paz espiritual do que com conforto e sem dor. Fora isso, 50% dos brasileiros acreditam que o mais importante no fim da vida é exatamente tentar prolongá-la ao máximo e evitar a morte. Para os entrevistados de Japão, Itália e Estados Unidos — com 82%, 68% e 71%, respectivamente —, o essencial nesse momento é reduzir a dor, o estresse e o desconforto do paciente.
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Mas se o suicídio assistido ainda não está presente no imaginário coletivo dos brasileiros, isso não significa que ele não aconteça. Em 2010, a Dignitas Schweiz recebeu um residente do Brasil em suas acomodações e o auxiliou no suicídio. E a proibição também não parece ter impedido ninguém de tirar a própria vida na Alemanha. Na Lifecircle, o número de requerentes aumentou consideravelmente depois da proibição em terras germânicas. Em 2013, eles tinham recebido oito solicitações de ajuda; em 2016, foram 52.
DILEMA ENTRE OS MÉDICOS
Na época em que Jana buscou ajuda no país vizinho, o suicídio assistido profissional não era penalizado na Alemanha. Mas a falta de clareza na legislação e o pouco conhecimento sobre o assunto deixaram mãe e filha inseguras. “Na Alemanha, isso ainda era uma área nebulosa na legislação. Além disso, o médico que ajudasse corria o risco de ser excluído da Câmara Nacional de Médicos”, justifica Anett.
Mesmo assim, antes da aprovação do artigo 217, alguns médicos alemães ajudavam pacientes a concretizar o desejo de morrer. Um deles era o berlinense Uwe-Christian Arnold. Nos 20 anos em que esteve envolvido com morte assistida, Arnold diz já ter auxiliado mais de 500 pessoas, prescrevendo remédios e dando instruções ou estando de fato presente na hora do suicídio.
Jana o procurou antes de ir à Suíça, mas, como não podia mexer nada do pescoço para baixo, ela não poderia aplicar em si mesma uma injeção ou erguer um copo com um coquetel de remédios. Arnold precisou negar o caso, conta, mas a aconselhou a buscar a associação Lifecircle no outro país. Matar alguém, mesmo que a pessoa tenha solicitado, é crime na Alemanha. Por isso, o médico não poderia lhe dar uma injeção com as próprias mãos ou virar o copo para que ela tomasse os remédios.
Em 9 de maio de 2014, Jana escreveu um e-mail à Lifecircle com a ajuda de uma amiga: “Eu não me sinto mais eu mesma, sou completamente dependente dos outros. Assim eu não posso e não desejo mais viver”. Ela terminou com um “por favor, me ajude a acabar com essa insuportável situação”.
O RÍGIDO PROCESSO SELETIVO
Antes de organizar a passagem só de ida, o requerente que deseja tirar a própria vida precisa atender a determinados critérios e apresentar uma série de exames e pareceres médicos. Antes de tudo, é preciso tornar-se membro da associação em que o suicídio será realizado. Para isso, basta fazer um registro com informações pessoais e pagar uma taxa que varia em cada organização. Na Lifecircle, o valor é de 50 francos por ano para os suíços e 50 euros para cidadãos de outros países.
Em geral, os critérios não mudam muito de uma organização para outra. O mais importante é a capacidade de discernimento do suicida. “Se a pessoa não estiver raciocinando bem, um copo com um coquetel de remédios não é um suicídio, mas um homicídio”, diz o advogado Roger Kusch, que mantinha a própria associação de suicídio assistido na Alemanha até 2015. O requerente deve ainda estar em plena capacidade mental de tomar decisões, o que, às vezes, não é tão óbvio, dependendo da idade ou doença.
Outra exigência é o que Roger Kusch chama de plausibilidade. “É o critério mais difícil. É se colocar no lugar do outro e avaliar se o motivo do suicídio é compreensível”, explica. É importante avaliar se o requerente sofre de uma doença terminal ou de um sofrimento já intolerável. O terceiro critério é o desejo constante de morrer — o querer morrer deve ser uma certeza, e não uma coisa que vai e vem conforme mudanças de humor.
Após conversas com funcionários e médicos, o requerente que preenche todos os critérios recebe a chamada “luz verde”. A permissão não significa que a pessoa tem que resolver às pressas o dia em que deseja morrer. Significa apenas que a porta está aberta e cabe a ela decidir quando e se ainda quer passar por isso.
Na Suíça, para receber a luz verde definitiva, além de enviar todos os documentos, o interessado precisa ser examinado por dois médicos. “Quando a pessoa chega aqui, ela conversa com um médico já no primeiro dia. No segundo dia de manhã, ela encontra um segundo médico e à tarde fica sabendo se recebeu a luz verde definitiva. No terceiro dia, já é feito o auxílio”, conta a médica Erika Preisig, fundadora do Lifecircle.
O suicídio pode acontecer na casa da pessoa ou em uma residência da instituição, dependendo de como cada organização trabalha. O procedimento ocorre de forma tranquila, sem pressa. O auxiliar que estiver acompanhando faz algumas últimas perguntas, como “precisa realmente ser hoje?”. Se a reposta não for segura o suficiente, o auxiliar segue questionando o suicida intensamente.
“Eu pergunto o nome da pessoa mais uma vez, se ela lembra quando chegou até a Lifecircle e por que está ali. E pergunto se ela sabe o que vai acontecer se eu liberar a válvula da infusão que está no seu braço”, explica Preisig.
Se a pessoa responder a todas as perguntas com bastante certeza, não resta nada a ser feito a não ser dizer “quando você quiser, pode liberar a infusão”. Caso o suicida perceba que ainda não está pronto, ele pode simplesmente deixar o copo com os medicamentos na mesa. Ou pedir para se libertar da infusão. A indecisão também pode vir do lado do auxiliar. Se, nessa última conversa, ele achar que a pessoa está insegura, pode simplesmente recolher seus equipamentos e remédios e ir embora.
Na Suíça, o remédio pode ser tomado por via oral ou intravenosa. No caso de pacientes como Jana, que não têm movimento nos braços, é montada uma espécie de alavanca que o paciente pode acionar mexendo a cabeça. A alavanca é ligada a uma válvula que libera a infusão, já posicionada na veia do suicida. Esse fármaco tem efeito rápido e, depois de alguns minutos, a pessoa dorme tranquilamente para não mais acordar.
Organizações que oferecem a possibilidade do suicídio assistido costumam gravar todo o procedimento em vídeo. Ele ajuda a provar que o paciente deu o último passo sozinho, caso a morte precise ser investigada. Na Suíça, por exemplo, a organização é obrigada a chamar a polícia após o procedimento. Já informados antes de que ali aconteceria um suicídio assistido, os policiais chegam, assistem ao vídeo, checam os documentos e fazem algumas perguntas antes de liberar o corpo. Uwe-Christian Arnold, o médico de Berlim, não filmava o suicídio, mas exigia que os pacientes assinassem um termo em que confirmavam seu desejo de morrer e que, por isso, o médico não deveria fazer qualquer intervenção para evitar sua morte. A maioria dos casos que aceitou eram de pessoas com câncer, esclerose múltipla ou esclerose lateral amiotrófica, mesma condição da qual sofre o físico teórico Stephen Hawking.
Hoje, o próprio médico luta contra um câncer de próstata e afirma que vai recorrer ao suicídio se precisar: “Cada um decide por si. Eu nunca vou dizer a alguém que ele deve morrer. Eu sei por mim que eu não quero esperar até o ponto de receber cuidados paliativos. Eu quero morrer antes”.
GLOSSÁRIO DAS DESPEDIDAS
Entenda as expressões usadas para as diferentes formas de dar fim à vida
Morte assistida
Termo genérico que abarca todas as intervenções cujo resultado é a morte de alguém, ou o não prolongamento de sua vida. Mas essa intervenção só é feita se a pessoa manifestar seu desejo de morrer.
Suicídio assistido
Uma pessoa com desejo de morrer recebe ajuda para isso, seja de um médico, seja familiar, cuidador etc. No caso institucionalizado, uma organização consegue a prescrição dos remédios ou da injeção com um médico e prepara tudo para o suicida. O mais importante nesse processo é que o paciente execute o último passo, ou seja, ele deve tomar o medicamento ou aplicar a injeção.
Eutanásia
A palavra, de origem grega, significa “boa morte”. Diferentemente do que acontece no suicídio assistido, neste caso a ação que leva à morte, como a aplicação de uma injeção, é feita por uma segunda pessoa. Na Alemanha, o termo “eutanásia” é associado ao nazismo, que usava técnicas de extermínio também contra pessoas doentes. Por isso, no país a prática é chamada de “morte assistida ativa”.
Morte assistida passiva
Ocorre quando alguém interrompe o tratamento que está mantendo outra pessoa viva, quando esse é o desejo do doente. Por exemplo, um paciente com uma doença terminal pede para que o médico ou os familiares desliguem os aparelhos que o mantêm vivo. Não tem o objetivo direto de matar, mas o paciente possivelmente vai morrer pela falta de medicação.
Cuidados paliativos
É o acompanhamento oferecido a pacientes terminais e a seus familiares quando, depois de se confirmar que a doença não tem cura, o tratamento foca apenas no bem-estar e no conforto do paciente em seu tempo final de vida.
Sedação paliativa
O paciente recebe analgésicos ou sedativos para que morra de forma indolor. Diferentemente da eutanásia, com que é confundida algumas vezes, neste caso o objetivo da medicação não é a morte do paciente, mas o alívio do sofrimento até que morra. O falecimento acontece de forma natural, sem qualquer intervenção.
CADA CABEÇA UMA SENTENÇA
Descubra em que países a eutanásia e o suicídio assistido são permitidos. No Brasil, ambas as práticas são ilegais, mas o tema parece estar saindo da zona nebulosa de assuntos indiscutíveis
Suíça
Desde 1942, a ajuda ao suicídio só é penalizada se a pessoa que auxiliou o fez por motivos considerados egoístas, como receber herança ou algum benefício.
Alemanha
Desde a aprovação do artigo 217 em 2015, qualquer auxílio que seja prestado mais de uma vez configura crime. A lei exclui parentes e pessoas próximas.
Holanda
Desde 2002, as práticas do suicídio assistido e da eutanásia são legalizadas no país. A lei prevê uma série de rigorosas condições para ambas.
EUA
Atualmente, cinco estados têm leis que legalizam o suicídio assistido para pacientes terminais. A prática da eutanásia, porém, é ilegal em todo o país.
Colômbia
Único país latino--americano da lista. Em 1997, a eutanásia foi descriminalizada em casos de pacientes com doenças terminais auxiliados por seus médicos a morrer.
Brasil
É proibido instigar ou prestar auxílio para alguém se suicidar. A pessoa que o fizer pode ser condenada a até seis anos de prisão pelo artigo 122 do Código Penal. O suicídio pode acontecer em casa ou em uma instituição
*Caso o suicida perceba que ainda não está pronto, ele pode simplesmente deixar o copo com os medicamentos na mesa.
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