Criacionismo ou evolução? Papel da religião é debatido nas escolas
No município Engenheiro Paulo de Frontin (RJ), de 13,5 mil habitantes, um pré-adolescente judeu do nono ano de uma escola pública é obrigado a rezar o Pai Nosso. Ao tentar se retirar da sala, é intimidado com olhares severos dos demais alunos e pressionado a voltar pela inspetora. Segundo a funcionária, a oração é universal (ela é, na verdade, cristã).
Já em Miraí (MG), a professora Lila Jane de Paula, da Escola Estadual Santo Antônio, diz a um aluno de 17 anos que “o jovem que não tem Deus em seu coração nunca vai ser nada na vida”. O garoto é o único ateu da turma. Questionada, ela afirmou que a proibição de pregação religiosa em instituições públicas “não existe”.
No Grajaú, bairro da zona norte do Rio de Janeiro (RJ), um menino de 12 anos é proibido de entrar na escola municipal onde estuda por usar bermuda branca e guias (fios de contas) do candomblé. “Fiz questão de pedir pessoalmente desculpas ao jovem e à mãe”, afirmou o então prefeito Eduardo Paes ao jornal O Globo. “Todos os nossos alunos podem e devem manifestar seu apreço cultural e religioso.”
Todos esses casos aqui relatados viraram notícia em jornais locais. No final do ano passado, as matérias foram recortadas e levadas para um encontro realizado com uma dúzia de professores da rede pública de São Paulo. GALILEU acompanhou o evento, promovido pela ONG Ação Educativa com o objetivo de entender como os educadores se comportam em relação às diferentes religiões dentro da sala de aula.
Roseli Fischmann, coordenadora do programa de pós-graduação em educação da Universidade Metodista (SP), foi palestrante no encontro e comentou a reação dos professores aos casos. “Todo problema ligado a discriminação e preconceito é colocado longe. ‘Na minha escola jamais aconteceria’. Negando que o problema está próximo, você não se posiciona.” Defensora do Estado laico, a professora está na linha de frente do combate à discriminação religiosa nas escolas do país.
SÓ ACREDITO VENDO
A Constituição afirma que o ensino religioso deve ser uma disciplina de matrícula facultativa nas escolas públicas. Já a Lei das Diretrizes e Bases da Educação, mais detalhada, explica que o currículo deve respeitar a diversidade religiosa brasileira e ser construído com participação de entidades de diferentes religiões. Na prática, porém, não é isso que acontece. Um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) publicado em 2011 revelou que a disciplina constava como obrigatória em escolas públicas de pelo menos 11 estados.
“O correto é ensinar respeito à escolha religiosa, que é algo intrínseco ao ser humano”, explica o padre Lédio Milanez, diretor-presidente do Instituto Rogacionista Santo Aníbal, em São Paulo (SP). A instituição, católica, administra creches e albergues em parceria com a prefeitura, e mantém a religião longe da rotina dos serviços. “Eu sou contra o ensino de práticas religiosas. O Estado é laico. Da maneira que está, a maior parte dos professores só vai ensinar a própria prática.”
Para William Cobern, professor de ensino de ciência da Universidade de Western Michigan, nos Estados Unidos, e referência internacional na questão da convivência entre religião e ciência na sala de aula, algumas crenças podem entrar em conflito direto com o conteúdo das aulas que tratam da evolução biológica. “Tanto os Estados Unidos quanto o Brasil têm núcleos arraigados de cristãos conservadores que leem o Gênesis [livro bíblico que narra a criação do mundo] ao pé da letra e que, portanto, rejeitam a teoria de Darwin.”
No Brasil, quase 30% dos jovens que têm entre 15 e 16 anos consideram falsa a premissa de que a espécie humana descende de outra espécie de primata — ou seja, de que o homem e o macaco compartilham um ancestral comum (veja gráfico ao lado). Entre os evangélicos de missão (luteranos, metodistas, adventistas e outros), essa porcentagem chega a praticamente 50%. “O jovem acha que o professor está tentando mudar a crença que ele traz da família”, conta Graciela da Silva Oliveira, chefe do Departamento de Biociências da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e responsável pela pesquisa publicada em 2015.
NÃO SOU CAPAZ DE OPINAR
Na Itália, onde 71% da população se declara católica (no Brasil, são 50%), só 5,9% dos católicos não acreditam na teoria de Darwin. Os especialistas concordam que a igreja católica hoje não atua com o mesmo ímpeto dos protestantes contra a biologia evolutiva. O próprio papa Francisco afirmou, em outubro de 2014, que o Big Bang e a teoria da evolução não são incompatíveis com a noção de criação e que Deus não era “um mágico, com uma varinha mágica capaz de fazer tudo”. Para o padre Milanez, a postura assusta quem está acostumado ao dogma. “O papa atual transfere para o fiel a capacidade de tomar decisões. Mas as pessoas preferem que ele bata o carimbo.”
Em junho de 2015, enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) abria uma consulta pública sobre o ensino de religião, tramitava na Câmara o projeto de lei (PL) nº 8.099/2014, proposto por Marco Feliciano, que prevê a inserção do criacionismo na grade curricular obrigatória do ensino público. O PL está desde maio de 2016 na Mesa Diretora, e consta como sujeito à apreciação conclusiva pelas comissões.
“Se os alunos aprendem a Teoria da Evolução, por que não dar a eles o criacionismo?”, perguntou o pastor Feliciano à GALILEU. “Seria ingenuidade acreditar que Deus não deixaria pistas e evidências. Há um designer inteligente.” O deputado afirma que seu projeto de lei busca melhorar uma sociedade de maioria cristã, e faz a própria interpretação da teoria do cientista britânico: “Há dois princípios básicos na Teoria de Darwin, a ancestralidade comum e a seleção natural. Tenho reticências quanto à ancestralidade comum, pois nela Darwin ‘prega’ que nós, Homo sapiens, temos como ancestral comum os símios.”
CIÊNCIA COM FRONTEIRAS
“Deus está morto”, disse Nietzsche, e Pierre Clément está atrás da prova desde então. O pesquisador da Universidade de Aix-Marselha, na França, avalia as crenças de professores de ensino básico e médio de todo o mundo — e procura saber até que ponto os céus ainda têm voz sobre a sala de aula. “Há exceções muito interessantes, mas, no geral, quanto menos desenvolvido economicamente é um país, mais a população — incluindo estudantes e professores — pratica alguma religião”, explica o cientista. “E quanto mais eles praticam a religião, qualquer que seja ela, mais eles são criacionistas.”
Na própria França — em que, segundo o biólogo, mais de 80% dos professores não consideram que Deus influencie a evolução de Darwin em nenhum grau —, os filhos de imigrantes já são parcela considerável das salas de aula. E eles vêm de casa com uma formação cultural muito diferente dos padrões europeus. “Na Argélia, a evolução nem sequer é parte do currículo de biologia”, diz Clément. “No Marrocos foi introduzida recentemente, mas sem menção à evolução humana, assim como no Líbano.”
Durante sua pesquisa, Clément visitou um liceu no sul da França e pediu a professores de filosofia que conversassem com alunos religiosos sobre o que mudou em suas visões de mundo após a compreensão da teoria evolutiva. Muitos afirmaram claramente não acreditar no que haviam aprendido e disseram que só foram aprovados porque deram as respostas que eram esperadas pelos professores. Na opinião do pesquisador, a solução é entender que religião e ciência são áreas diferentes, e não concorrentes. Mas nem todos os especialistas concordam com esse ponto de vista.
Entre 2007 e 2010, o professor Antonio Carlos Marques foi o responsável pela pós-graduação do Instituto de Biociências (IB) da USP. No período, adquiriu o hábito de ler as dedicatórias das teses produzidas no local — e encontrou até citações do Gênesis: “Como é que um cientista em formação, que por princípio não deve ter dogmas, pode expressar sua crença em um documento científico formal?”.
Intrigado, Marques convocou outros dois pesquisadores e, juntos, passaram a limpo os agradecimentos de 2.778 trabalhos de pós-graduação do IB: 8% deles mencionaram autoridades religiosas. Uma taxa baixa, mas, na opinião do professor, contraditória. “Meu incômodo persiste. Seja na educação básica, seja na pós-graduação, religião e ciência são mundos muito diferentes”, ressalta. “Eu entendo a necessidade pessoal de explicações metafísicas, mas como o próprio aluno não sente o conflito dentro de si quando esses mundos se encontram?”
Como Marques, William Cobern considera o conflito inevitável. “Foi Stephen Jay Gould [importante divulgador científico norte-americano] que popularizou a ideia de que religião e ciência são coisas diferentes e que, portanto, não entram em conflito”, afirma o professor de ensino de ciência da Universidade de Western Michigan. “Mas isso não é verdade. A pesquisa científica é limitada pela opinião pública, que se baseia, muitas vezes, em convicções religiosas.”
CADA MACACO NO SEU GALHO
Quando o assunto é Dante Alighieri, o maior poeta da Itália, paraíso, purgatório e inferno, mais que questões de fé, são um desafio arquitetônico. Por isso, Sidnei Xavier dos Santos, professor de literatura da Escola Waldorf Francisco de Assis, na zona norte de São Paulo, é cuidadoso ao apresentar A Divina Comédia aos alunos do segundo ano do ensino médio. Na lousa, desenha círculos concêntricos. Cada um deles, na obra fundadora da língua italiana, é dedicado à danação eterna de um tipo de pecador. Ao longo da aula, os estudantes estarão livres para levantar discussões sobre ética e moral. Afinal, essa aula de literatura não é a primeira na formação deles a abordar religião.
A pedagogia Waldorf, em que é pautado o currículo da escola paulistana, é baseada na antroposofia, uma espécie de método de estudo da realidade criado pelo filósofo austríaco Rudolf Steiner no início do século 20 que dá muito valor à arte e ao espírito. Nessas escolas, a religião é uma questão democrática, e como em uma versão condensada da própria história da civilização, os alunos aprendem as mitologias grega, nórdica, egípcia e chinesa antes de chegar às crenças monoteístas e à ciência.
“Todas as crianças têm a oportunidade de conhecer os modos pelos quais o homem concebe o mundo e a divindade”, afirma o professor. “A antroposofia tem raiz cristã, mas não há ensino de dogmas de nenhum gênero. Cristo, assim como Maomé e Buda, está no currículo de história.”
A pluralidade da abordagem Waldorf ataca o cerne da questão: visão de mundo e fato não são a mesma coisa. O mito de criação de um povo não se propõe a ser histórico. E sua importância cultural não depende de sua comprovação. A ciência é o oposto. Nas palavras do astrofísico Neil deGrasse Tyson, “o bom da ciência é que ela continua sendo verdade mesmo que você não acredite nela”.
As leis da física regem igualmente os corpos de ateus e de fiéis. Para Roseli Fischmann, a solução para a convivência pacífica entre ciência e religião nas escolas envolve, por incrível que pareça, a necessidade de que os religiosos reforcem suas crenças: “Há o medo de que, ao ter acesso a certos conhecimentos, os fiéis possam escapar das mãos da religião. As religiões precisam ter um pouco mais de fé nelas mesmas”.
PAPAI DO CÉU NA REUNIÃO DE PAIS
Faz quase 500 anos que a religião está, de alguma forma, no currículo oficial das escolas públicas brasileiras
1549
Missionários jesuítas chegam ao Brasil. Na Bahia, é fundado o primeiro colégio público voltado à catequização dos índios.
1824
D. Pedro I outorga a Constituição Política do Império do Brasil, que torna a religião católica apostólica romana a oficial do novo império.
1891
A primeira constituição republicana separa Estado e religião e prevê que o ensino público será laico.
1934
A Constituição de Getúlio Vargas define que o ensino religioso será de “frequência facultativa”.
1988
Passa a vigorar o texto atual: “O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.”
2009
Lula faz acordo com o Vaticano. O texto da Constituição ganha uma ressalva: “O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa (...)”
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