"Não é possível fazer internação compulsória indiscriminada"
No dia 21 de maio, domingo, foi autorizada a realização de uma megaoperação policial na região da Luz, centro de São Paulo, para a prisão de traficantes de drogas que atuavam no local. A ação, feita em parceria com a Polícia Civil e Militar, concentrou-se na área conhecida como "cracolândia", onde ocorre grande fluxo de usuários da substância.
A operação, que envolveu em torno de 900 policias, foi amplamente criticado por representantes de instituições do serviço social, como as organizações Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas e a Conectas Direitos Humanos.
Depois de domingo, os usuários, que antes concentravam-se na área, espalharam-se por outros 23 pontos da cidade, segundo informações da Guarda Civil Metropolitana. A maioria deles, na Praça Princesa Isabel, a 400 metros da antiga "cracolândia".
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Na terça-feira, dia 23 de maio, em uma ação do prefeito da cidade João Dória realizada para demolir imóveis da mesma região, três pessoas ficaram feridas. Na quarta, a antiga secretária de Direito Humanos do município de São Paulo, Patrícia Bezerra, foi uma delas. Após chamar a ação de "desastrosa", Bezerra entregou o cargo. O ato resultou também em uma limiar judicial que proibiu novas remoções na região a menos que exista encaminhamento de moradia para os habitantes.
No sábado, dia 27, a justiça autorizou a prefeitura a fazer a internação compulsória de usuários contra a vontade se houvesse autorização judicial perante avaliação médica. A medida, porém, foi vetada a pedido do Ministério Público e da Defensoria Pública.
A GALILEU conversou com a antiga secretária de Assistência e Desenvolvimento da cidade de São Paulo, Soninha Francine, para saber como as recentes atitudes do munícipio e do estado poderão repercutir na recuperação dos usuários. A recuperação dos dependentes químicos da região era uma das prioridades da pasta.
Você já declarou que a região da Luz, onde se concentram os dependentes, não pode ser considerada um organismo simples. Por quê?
Qualquer lugar em que existem muitas pessoas convivendo intensamente é complexo — até mesmo um colégio particular para alunos de classe alta. Quando os conviventes têm laços rompidos com a família, amigos e a própria história (boa ou ruim), a identidade decomposta e a autoestima destruída; quando já se habituaram a um ambiente degradado e tenso, os relacionamentos são permeados por emoções e sentimentos extremados.
E ao mesmo tempo que o limiar de tolerância a adversidades é alto (vivem em condições horríveis!), as frustrações também. Lidar com essas pessoas exige muito preparo, planejamento e cuidado.
Quais eram as medidas planejadas para o combate ao crack quando você estava à frente da pasta de Assistência e Desenvolvimento?
A Assistência Social teria uma presença muito forte no território, com equipes de abordagem e a Tenda da Rua Helvetia aberta 24 horas. Ela seria um local de referência para atendimento social e para encontro entre as nossas equipes e do Consultório de Rua; para oficinas culturais e outras atividades.
Ofereceríamos um espaço para cuidados e auto-cuidado — banho, banheiros, lavanderia —, limpo e agradável para repouso noite e dia. O acolhimento viria em primeiro lugar. Juntos (usuários, assistência social, saúde e direitos humanos) construiríamos um plano individual: um projeto terapêutico pessoal fora do território, a estrutura seria muito melhor, com vagas diversificadas conforme os muitos perfis e arranjos sociais (as famílias por afinidade, os amigos).
Os Centros de Acolhida Especializados (para idosos, mulheres vítimas de violência, convalescentes, parturientes e seus filhos), Hotéis Sociais, Repúblicas e unidades de Locação Social seriam referenciados nos CAPS e CAPS-AD, mas o tratamento não seria condição para o acolhimento. Assistência social é para todos! E, muito importante, nos casos de internação para desintoxicação, haveria um serviço socioassistencial para receber as pessoas. Até nos casos de reinserção familiar a assistência continuaria acompanhando.
Que consequências as últimas medidas da prefeitura podem trazer não só para os usuários como para os moradores da cidade em geral?
Fraturar os vínculos já construídos com as equipes de Saúde e Assistência Social, desorganizar quem já estava em processo de reorganização, espalhar rejeição e medo por toda parte. Quem tem recebido essas pessoas "da Cracolândia" nos últimos dias, como o Clube de Mães da Sé (no "Castelinho"), tem as percebido estressadas, exaustas.
Segundo o secretário de Saúde do Estado, David Uip, a dispersão causada era “esperada e planejada”. Para ele, isso ajudou na abordagem dos agentes de saúde. Além disso, contribuiu para o objetivo do prefeito de liberar o fluxo de pessoas no local. Mas agora, segundo relata a Folha, há um total de 23 novas microcracolândias. Essa dispersão realmente ajuda no tratamento dos usuários? Como encontrar um equilíbrio entre a assistência que o dependente precisa e os pedidos da população para a liberação da área?
A cracolândia daquele quadrilátero era um nó apertado, que iríamos ter de desatar com cuidado e planejamento. Tratando as pessoas com seus direitos, cuidado e afeto, gradualmente, conforme sua capacidade e possibilidade, se desvinculariam de uma "vida loca" de sobressaltos e sofrimento e da opressão e violência do tráfico. Depois da ação policial de domingo — que, diga-se, não foi uma "caça aos usuários" mas uma operação contra alguns cabeças do crime — é claro que a dispersão era esperada (e, do ponto de vista da Polícia, planejada: precisavam "liberar o caminho" até seus alvos). Nós, da Saúde e Asssistência Social é que deveríamos estar mais bem preparados.
Qual é a sua opinião sobre a internação forçada de usuários defendida pela prefeitura?
Toda internação é resultado de uma avaliação criteriosa; um diagnóstico individual. Vale para qualquer doença e também para o uso nocivo de drogas. Conforme a legislação, a internação psiquiátrica somente será cabível "quando os recursos extra-hospitalares forem considerados insuficientes, com risco à integralidade física, à saúde ou à vida dos portadores de transtornos mentais ou a terceiros".
A situação de perigo concreto deve estar prevista em laudo médico. A internação compulsória é decorrente de ordem judicial, embasada também em parecer médico que ateste a necessidade da medida. Não é possível fazer internação compulsória indiscriminada!!
O que é mais importante e mais urgente fazer em relação à situação daquela região: tratar a dependência química dos usuários ou combater o tráfico existente no local?
Tratar a saúde dos usuários, o que vai além da dependência química. São muitos os aspectos envolvidos. Não sou condescendente com a violência gravíssima do tráfico, mas o combate deve ocorrer nas suas artérias - como as drogas chegam até ali, afinal??
Como vereadora, você pretende se envolver com a questão de alguma forma?
De todas as formas. Continuar presente nas cenas de uso, acompanhar os serviços de Saúde Mental e Assistência Social, buscar recursos para eles e para atividades culturais e esportivas e levantar uma bandeira: a das salas seguras de uso, iniciativa bastante bem-sucedida em países da Europa. Se em lugares ricos e com boa estrutura elas fazem bem aos usuários e para a sociedade de um modo geral, no Brasil são mais necessárias ainda.
(*com supervisão de Nathan Fernandes)
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