Como combater o crack
A região do centro de São Paulo conhecida como cracolândia voltou com tudo aos noticiários, com as novas operações policiais contra traficantes e usuários. Entra governo, sai governo, é a mesma coisa desde 2000, quando usuários de crack passaram a se concentrar numa região específica do centro da cidade. Políticos sempre se preocupam em passar a imagem de que são durões na luta contra as drogas. E nada melhor para dar esse recado do que fazer uma grande blitz na cracolândia. Por mais que isso não resolva o problema.
A repetição desse tipo de iniciativa – e do seu fracasso – se baseia numa série de mitos construídos em torno do crack, de seus usuários e da melhor forma de lidar com eles. O maior deles é pensar que a repressão ao tráfico reduz o uso de drogas. A teoria diz que, se você prender o traficante, haverá uma redução da oferta. Sem opção, o usuário vai procurar outra coisa para fazer além de consumir sua dose de drogas. Logo, basta você chamar a polícia e prender os traficantes para começar a resolver o problema. Mas na prática a teoria é outra.
Se você prende um traficante, amanhã tem outro no lugar dele. Acontece com Santo Cristo no Faroeste Caboclo e em qualquer biqueira do mundo. A chamada “guerra às drogas” tem prendido e matado traficantes há décadas e o tráfico e o consumo só aumentam. Matou Pablo Escobar e acabou com o Cartel de Medellín? Vem o de Cali. Acabou com os colombianos? Vêm os mexicanos. A julgar pela sucessão de protagonistas em potencial, a série Narcos tem tudo para não acabar nunca. Isso não significa que devemos parar de prender traficantes. As prisões devem continuar a todo vapor. A questão é que elas, sozinhas, não acabam com o problema.
Outro mito que orienta os políticos é a convicção de que a internação compulsória é a melhor saída para a dependência de crack. Mas basta uma lida nas pesquisas para ver que isso é no mínimo controverso. Uma pesquisa publicada em 2016 na revista científica Lancet Global Health comparou os índices de recaída de dois programas de internação na Malásia – um compulsório e outro voluntário. Um mês depois de terem alta, 49% dos pacientes internados à força tiveram recaída, contra apenas 9% dos que se internaram por vontade própria. Além de não funcionar, a opção de tratamento do governo do Estado e da prefeitura é cara. Para ter onde internar gente no atacado, a prefeitura contratou, por exemplo, os serviços do Hospital Cantareira (particular). O contrato de um ano prevê 91 novos leitos ao preço de R$ 230 por dia – total de R$ 7,5 milhões ao fim de um ano. O presidente da organização que administra o serviço, diga-se, é coordenador do programa de usuários para crack do Estado, chamado de Recomeço.
Vancouver criou salas monitoradas pelo Estado para que viciados usassem heroína. E a busca por tratamento cresceu.
Mas existe uma verdade importante que os governos geralmente ignoram quando o assunto é política de drogas: é possível um dependente “dar um jeito” na sua vida sem necessariamente largar a droga. Essa evidência vem do sucesso de programas de redução de danos. Neles, os usuários problemáticos têm acesso a serviços sem a obrigação de entrar em abstinência. A prioridade é ajudá-los a retomar o cuidado com sua vida fortalecendo seus laços afetivos e sua cidadania, facilitando seu acesso a direitos e serviços básicos – habitação, emprego, estudo e lazer.
Estudos mostram que boa parte das pessoas que consomem crack compulsivamente o fazem para lidar com problemas anteriores – violência psicológica ou sexual, geralmente sofridas na infância. Nesses casos, pelo menos, a dependência da droga é mais a consequência do que a causa dos seus problemas. Um estudo do psicólogo americano Bruce Alexander testou o comportamento de dois grupos de ratos com acesso ao crack. Um deles vivia em gaiolas pequenas, sem contato com outros ratos e outras atividades. Nessa situação, era comum os roedores usarem a droga até morrer. O outro grupo vivia numa “gaiola-parque”, 200 vezes maior, com outros 39 ratos para interagir, além de brinquedos e outras distrações. Esse grupo até usava a droga, mas numa quantidade muito menor.
Na pesquisa nacional, quando se perguntou aos frequentadores das cracolândias brasileiras o que eles gostariam de ter num serviço de assistência, as quatro demandas mais comuns foram comida, banho, ajuda para conseguir emprego e cursos. As respostas dão uma pista dos “brinquedos” que faltam para essas pessoas.
As iniciativas mais eficazes
Em Pernambuco, o governo do Estado criou um programa de redução de danos chamado Atitude. Assistentes sociais vão às cenas de uso, conhecem os usuários, oferecem água, camisinhas e o endereço de centros de apoio onde podem comer, tomar banho e pernoitar. Lá, os usuários descobrem que podem ter acesso a moradia fixa e atendimento médico e psicológico em centros intensivos, por até seis meses. É uma espécie de internação voluntária, da qual podem sair para tirar documentos ou visitar a família, por exemplo. No fim dos seis meses, têm apoio para conseguir emprego e um subsídio temporário para moradia. A autonomia do usuário é respeitada ao longo de todo o processo.
O programa de Pernambuco tem aprovação de 97% dos atendidos, segundo um estudo da UFPE. E 82% dos usuários pararam de usar drogas diariamente. A redução do uso, especula-se, foi uma consequência natural do maior cuidado dos usuários com a própria saúde, a partir do momento em que tiveram uma chance real de reconstruir a vida. O programa foi apresentado em congressos internacionais e na ONU como um modelo de sucesso. No Brasil, porém, segue amplamente ignorado.
Em Vancouver, a aposta foi ainda menos ortodoxa: implantaram salas de uso assistido para os usuários de heroína, a droga que mais causa problemas de saúde pública no Canadá. Nessas salas, os usuários têm acesso a um local limpo, com agulhas descartáveis e informações sobre serviços sociais e de saúde. Essa abordagem mais permissiva trouxe resultados que nenhuma ação na cracolândia obteve: redução drástica do uso de drogas em locais públicos e, mais importante, fez crescer a procura por tratamento.
Experiências assim mostram que existem alternativas para lidar com a questão das drogas. O problema, talvez, é que tais iniciativas não geram votos, já que não têm nada de espetaculosas: elas apenas funcionam. Que os políticos brasileiros deem mais valor a esse critério.
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