Como o cérebro humano evoluiu graças à cozinha
O ser humano é impressionante. Nosso cérebro é sete vezes maior do que o esperado para o tamanho do nosso corpo e leva um tempo extraordinário para se desenvolver. Nosso córtex cerebral é o maior em relação ao tamanho do cérebro como um todo, e sua parte pré-frontal também é a maior. O cérebro humano, isoladamente, consome uma quantidade tremenda de energia: 25% das calorias necessárias para que o corpo funcione durante um dia. Ele se tornou enorme no decorrer de um brevíssimo tempo na evolução e deixou para trás nossos primos, os grandes primatas, como o gorila e o orangotango, com seu cérebro minguado e com o tamanho de apenas um terço do nosso. Então o cérebro humano é especial, certo? Errado. Nosso cérebro é notável, sim, mas não especial no sentido de ser uma exceção às regras da evolução. No entanto, parece que temos o cérebro mais capaz do planeta, aquele que explora outros cérebros em vez de ser explorado por eles. Se nosso cérebro não é uma singularidade evolutiva, onde está a vantagem humana?
Para entender a vantagem humana, é necessário ver o cérebro humano à luz da evolução e das novas evidências que sugerem uma nova explicação para o que torna únicas nossas habilidades cognitivas: nosso cérebro suplanta o de outros animais não porque somos uma exceção à evolução, mas porque, por simples razões evolucionárias, temos o maior número de neurônios no córtex cerebral, algo que nenhuma espécie atingiu. A vantagem humana reside, primeiro, no fato de sermos primatas, e por isso temos um cérebro estruturado segundo regras de proporcionalidade muito econômicas, graças às quais um grande número de neurônios cabe em um volume relativamente pequeno em comparação com outros mamíferos. Em segundo lugar, somos a espécie primata que se beneficiou do fato de que, há 1,5 milhão de anos, nossos ancestrais inventaram um truque que permitiu a seus descendentes ter um crescimento rápido e, dentro de pouco tempo, um número enorme de neurônios corticais, até agora sem rivais em outras espécies: o truque de cozinhar. Em terceiro e último lugar, graças à veloz expansão do cérebro possibilitada pelas calorias adicionais obtidas com o cozimento dos alimentos, somos a espécie que possui o maior número de neurônios no córtex cerebral — a parte do cérebro responsável por descobrir padrões, raciocinar de modo lógico, prever o pior e preparar-se para lidar com ele, criar tecnologia e transmiti-la por meio da cultura.
O HOMO CULINARIUS
Não costumamos nos ver como animais. Entretanto, somos primatas, e comparar-nos com outros primatas no que diz respeito às nossas necessidades de energia pode ser muito esclarecedor quanto à nossa história evolutiva. Se gorilas e orangotangos vivem no limite do número de neurônios cerebrais e massa corporal que os primatas podem ter, nós, humanos, nem sequer deveríamos existir. Isso porque os 86 bilhões de neurônios de nosso cérebro e nosso corpo exigiriam que dedicássemos mais de 9 horas diárias a encontrar e ingerir alimento.
Obviamente, procurar alimento e comer durante tanto tempo é algo que não fazemos todo santo dia nem teríamos condições de fazer. E nossos ancestrais também não. Mas como nossos ancestrais conseguiram ter condições para arcar com o crescente número de neurônios? Um dos aspectos característicos e mais notáveis da evolução humana é que o encéfalo das espécies Homo aumentou muito e com rapidez extraordinária — quase triplicou de tamanho durante o último 1,5 milhão de anos — enquanto os encéfalos dos grandes primatas estagnaram no mesmo tamanho que possuem até hoje. Seja lá o que foi que mudou que permitiu que os encéfalos do homem, e só do homem, aumentassem tanto e tão depressa, deve ter sido algo que fez essa restrição energética deixar de existir.
Existem quatro modos de contornar uma restrição energética ao número de neurônios no cérebro: (1) diminuir o tamanho do corpo; (2) diminuir o custo energético do cérebro; (3) obter mais energia gastando ainda mais horas diárias em alimentação; (4) aumentar de algum modo a energia obtida com a mesma quantidade de alimento — por exemplo, com uma mudança radical na dieta.
As três primeiras alternativas podem ser descartadas. O que nos restou foi contornar uma restrição energética mudando a dieta para obter mais calorias no mesmo período de tempo ou até em menos tempo. Quando nossos ancestrais começaram a ganhar um cérebro muito maior, já haviam se tornado não só coletores mas também caçadores — e caçar, por sua vez, deve ter exercido uma pressão seletiva por mais neurônios cerebrais, pois requeria mais cooperação, memória, planejamento, raciocínio, autocontrole, noção do estado mental dos outros caçadores, comunicação por alguma espécie de linguagem: habilidades corticais que se baseiam acentuadamente nas funções associativas de um córtex pré-frontal. Ao disponibilizar mais energia, a transformação em caçadores-coletores provavelmente pôs nossos ancestrais no caminho de ganhar um número maior de neurônios e ter condições de sustentá-los.
No entanto, isso tudo aconteceu entre 4 milhões e 1,5 milhão de anos atrás, um período no qual a massa encefálica cresceu apenas ligeiramente nas espécies da nossa linhagem. Um aumento radical e súbito no tamanho do encéfalo, como o visto na evolução do Homo, deve ter requerido uma mudança igualmente radical e súbita no aporte calórico. Um modo de obter esse tipo de mudança — conseguir mais calorias no mesmo intervalo de tempo — é um velho conhecido nosso. Existem boas evidências, cada vez mais numerosas, de que ele já era usado há 1 milhão ou talvez até 1,5 milhão de anos, na época em que o tamanho do cérebro humano começou a crescer rapidamente. É a transformação de gêneros alimentícios — uma pré-digestão fora do corpo, antes de o alimento chegar à boca — conhecida como ‘cozinhar’.
Cortar, bater, esmagar ou amaciar os alimentos por algum outro método antes de mastigá-los também é ‘cozinhar’, no sentido menos restrito de preparar o alimento em vez de comê-lo in natura. Cozinhar, nesse sentido mais abrangente, é algo que os primeiros Homo e até seus ancestrais caçadores-coletores já faziam — e algo que os ancestrais dos grandes primatas não humanos nunca fizeram. Mas essas formas primitivas de cozinhar não são nada em comparação com o número de calorias proporcionado pela técnica mais apurada: cozinhar com fogo. Cozimento saudável, rápido e eficiente: Transforme suas receitas em uma experiência única com o sistema de cozinha da Royal Prestige. Patrocinado
Cozinhar, ou algum modo de aumentar o aporte calórico dos alimentos, não foi simplesmente um bônus, uma vantagem acessória para o homem pré-histórico, e sim um requisito essencial para que seus cérebros se tornassem ainda maiores. Assim que o Homo se libertou das restrições energéticas impostas pela dieta crua, o tamanho do encéfalo aumentou rapidamente. Nossos ancestrais nunca divergiram da regra de proporcionalidade de neurônios dos primatas; eles apenas conseguiram continuar avançando em direção a ganhar mais neurônios, um número muito maior do que aquele ao qual os outros primatas estavam e ainda estão limitados em razão de suas dietas cruas. Não havia outro modo para o encéfalo humano se destacar, salvo uma mudança radical no aporte calórico. E a invenção da cozinha permitiu exatamente isso.
Ao mesmo tempo que aumenta o rendimento calórico dos alimentos, o cozimento reduz o tempo necessário para obter essas calorias, simplesmente porque é preciso mastigar muito menos para transformar o alimento em uma pasta macia o suficiente para ser engolida. Sobra mais tempo para fazer outras coisas com todos os neurônios que se tornam mais fáceis de sustentar. É fácil imaginarmos uma espiral ascendente, na qual a seleção natural favorece números maiores de neurônios, porque os indivíduos que os possuem têm uma vantagem cognitiva e agora dispõem de mais tempo para usá-los em caçadas, na busca de melhores habitações e nos cuidados voltados para o bem-estar de seu grupo, protegendo seus membros e transmitindo conhecimento sobre onde há comida e abrigo.
Resumindo uma história de 2 milhões de anos, a invenção da cozinha fornece a explicação mais simples sobre como os humanos puderam, em pouquíssimo tempo, livrar-se da limitação de comer alimentos crus e, graças ao número maior de neurônios que eles agora podiam sustentar, plantar o próprio alimento, colhê-lo e distribuí- lo em mercados, criar civilizações inteiras ao redor dessas atividades, estabelecer cadeias de distribuição, supermercados, eletricidade, refrigeradores e ‘alimentos industrializados’ enlatados, congelados ou desidratados, que podem ser armazenados por tempo indefinido e estão prontamente disponíveis para consumo. Esse processo teve fases ruins, é claro. Fomes coletivas foram comuns, em parte porque a própria transição para a agricultura reduziu a diversidade dos alimentos e deixou os humanos à mercê de pragas, secas e guerras. No outro extremo, a culinária industrializada retirou tanta água daquilo que comemos que transformou os alimentos prontos em bombas calóricas.
Então o que nós temos e nenhum outro animal tem e que explica nossa vantagem cognitiva? Um número notavelmente grande de neurônios. E o que nós fazemos e nenhum outro animal faz que nos torna humanos? Esqueça enganar, raciocinar, planejar, contar, usar linguagem — outros animais podem fazer essas coisas, pelo menos em certa medida. Nós cozinhamos o que comemos: essa é a atividade exclusivamente humana, a que nos permitiu pular o muro energético que ainda tolhe a evolução de todas as demais espécies e nos põe num caminho evolutivo diferente do de todos os outros animais. Como disse o autor Michael Pollan na revista Smithsonian: ‘Claude Lévi-Strauss e Brillat-Savarin consideraram a cozinha uma metáfora da nossa cultura, mas ela não é uma metáfora, é uma condição prévia’. Portanto, agradeçamos a nossos ancestrais Homo culinarius pelos nossos neurônios e tratemos a cozinha com o devido respeito. Eu agora faço isso, com certeza.”
Este conteúdo foi originalmente publicado em Exame.com
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