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"Não vejo campo da ciência em que brasileiros não possam ser excelentes"

 (Foto: Claudio Andrade)

 

Diretor dos documentários Santiago e Entreatos, produtor de outros filmes documentais como Edifício Master, do diretor Eduardo Coutinho, e fundador da revista Piauí, João Moreira Salles faz parte de uma das principais dinastias de mecenas da cultura brasileira — o Instituto Moreira Salles, com sedes em Poços de Caldas, no Rio de Janeiro e em São Paulo, reúne uma coleção de milhares de fotografias e músicas, além dos arquivos pessoais de escritores como Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade. Agora, para além das telas de cinema, o herdeiro de uma família de banqueiros também deseja investir nos laboratórios do país: junto de sua esposa, Branca, João Moreira Salles anunciou a doação de R$ 350 milhões para a criação do Instituto Serrapilheira, que apoiará a ciência produzida no Brasil.

Batizado com o nome dado à camada de matéria orgânica que fornece a maior quantidade de nutrientes ao solo das florestas, o órgão é o primeiro instituto privado a investir em ciência no país. De acordo com o casal Moreira Salles, o Serrapilheira terá orçamento anual entre R$ 16 milhões e R$ 18 milhões, valor dos juros obtidos pela aplicação financeira do montante inicial doado. Com o objetivo de centrar recursos no apoio a cientistas que realizem pesquisas nos campos de Engenharia, Matemática, Ciências Físicas e Ciências da Vida, a organização abrirá um edital para selecionar pesquisadores ainda no segundo semestre deste ano. “A atividade científica no Brasil é invisível para a maioria das pessoas — dos tomadores de decisão a boa parte do público, letrado ou não — e esse estado de coisas é lamentável. Se pudermos ajudar a reverter isso, teremos cumprido parte dos nossos objetivos”, afirma Moreira Salles.

Após analisar 138 currículos vindos de diferentes partes do mundo, um comitê de cientistas escolheu o nome do geneticista francês Hugo Aguilaniu para ocupar o cargo de diretor-presidente do Serrapilheira durante os próximos três anos. Pesquisador do Centro Nacional de Pesquisas Científicas da França, ele ganhou notoriedade com seu trabalho de genética relacionado ao envelhecimento dos animais. Apesar do sotaque francês, Aguilaniu demonstra conhecimento da situação do Brasil: casado com uma brasileira e falando português fluente, o pesquisador de 41 anos está confiante nos talentos da ciência nacional. “Se tivermos agilidade com os recursos fornecidos aos pesquisadores, eles podem despontar na comunidade internacional como os melhores em suas áreas”, afirma.

Como anda seu trabalho à frente do Instituto? Já se adaptou ao Rio de Janeiro?

Minha adaptação e da minha família foi muito boa, suave. No instituto, estamos trabalhando muito: temos uma estrutura bem formada, com uma equipe pequena, mas extremamente dinâmica. E agora estamos colocando tudo de pé para desenvolver um sistema de apoio aos pesquisadores que seja o mais eficaz possível e tenha um diferencial claro.

Qual seria esse diferencial em relação às demais agências de fomento à pesquisa?

Temos uma liberdade maior porque não utilizamos recursos públicos, que vêm com uma série de regras — o que é normal, mas leva a uma certa burocratização. Então, escolheremos os melhores pesquisadores do país, um número pequeno de pessoas, mas que contarão com recursos mais livres a longo prazo. Queremos dar aos pesquisadores um pacote para ajudá-los o máximo possível e permitir que façam pesquisas com ferramentas parecidas com as existentes na Europa e nos Estados Unidos.

No Brasil, os investimentos ligados à ciência costumam vir de recursos públicos. Essa é uma particularidade nacional?

Nos Estados Unidos, por exemplo, há uma participação importante de fundações, com iniciativas completamente privadas. No Brasil, instituições como essa que queremos ser são pouquíssimas. Historicamente, nos últimos 10, 15 anos, o investimento do governo brasileiro na ciência foi parecido com o dos governos francês e inglês. O que falta é pelo menos uma quantidade de dinheiro parecida que venha das empresas privadas.

E como a iniciativa privada pode contribuir para o desenvolvimento das pesquisas?

Há cientistas que fazem uma pesquisa mais pura e, por essência, são apoiados com dinheiro público. Mas há uma parte dos pesquisadores que trabalha com um estudo mais aplicado, e o setor privado pode apoiar essas pesquisas, isso não tira necessariamente a liberdade. O Instituto Serrapilheira não realizará essa distinção entre ciência básica e ciência aplicada. Nós queremos apoiar a ciência de excelência, para buscar realmente os melhores, independentemente de eles trabalharem em uma atividade privada ou não.

Quais as diferenças entre a ciência produzida no Brasil e aquela realizada nos países em que o senhor já trabalhou, como a França?

No mundo todo, o pesquisador tem essa curiosidade e vontade de entender o mundo, isso é o que temos em comum. Mas o que vejo no Brasil são as dificuldades burocráticas. O pesquisador tem de fazer muitas outras coisas além da pesquisa, como prestar contas, fazer contratações, solicitar bolsas de estudo. A pesquisa, como a atividade artística, é uma atividade de criação. E você não consegue ser criativo se tem de lidar com tantas coisas. A maior parte dos pesquisadores que encontrei aqui são heróis, porque eu não conseguiria fazer uma pesquisa com todo esse trabalho a mais. Na França, nos Estados Unidos, se quiser comprar alguma coisa para a pesquisa, basta ligar para uma pessoa e essa coisa chegará — há uma máquina universitária que funciona para você. Já aqui não, você está sozinho e é muito difícil. Então, de certa maneira, nosso pequeno instituto deseja dar uma ajudinha em relação a tudo isso.

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Neste primeiro momento, o Instituto planeja focar recursos em campos consolidados da ciência nacional. Quais potencialidades podem ser aprofundadas ao serem aportados recursos nessas áreas de conhecimento?

Nos últimos 15 anos, o Brasil se tornou um país importante em termos de produção científica, há uma massa crítica importante. Lógico que a infraestrutura precisa melhorar, mas o potencial dos pesquisadores não é o problema. A formação científica é excelente, tanto que, lá fora, há pessoas que tentam atrair os pesquisadores brasileiros porque sabem da qualidade de sua formação. Não vejo nenhum campo da ciência onde os pesquisadores brasileiros não tenham como ser excelentes, desde que se faça uma escolha rigorosa para selecionar os melhores. A Matemática é excelente, a Física Teórica é excelente, a Biologia está ficando cada vez mais forte, a Medicina em alguns lugares do país é muito boa. Nós acreditamos que, se tivermos agilidade com os recursos fornecidos aos pesquisadores, eles podem despontar na comunidade internacional como os melhores em suas áreas.

O Brasil produz uma grande quantidade de artigos científicos, mas, normalmente, a relevância desses trabalhos não é tão grande se comparada à de países desenvolvidos...

A seleção e a distribuição dos recursos foi durante muito tempo baseada no número de artigos publicados por pesquisadores. Eu entendo isso, no começo você tem de publicar muito para mostrar que existe no cenário mundial. Mas agora que se publica bastante, é necessário mudar o parâmetro para a qualidade e o impacto da publicação. Nosso critério de avaliação dos pesquisadores não será o número de papers publicados, e sim o impacto que eles terão. Ninguém consegue publicar quatro artigos na Nature por ano em nenhum país do mundo. Vamos iniciar essa mudança e acredito que outras agências de fomento farão a mesma coisa, para que o Brasil seja um país de produção científica intensa e excelente.

Como é possível fazer um plano para que o investimento em pesquisas não fique restrito a centros como São Paulo e Rio de Janeiro?

As outras regiões se interessam pela ciência, mas não têm recursos suficientes. Esse problema é um ciclo vicioso: quanto mais se dá dinheiro para o Sul e Sudeste, mais apenas esses locais terão infraestrutura e pesquisas de ponta. Precisamos quebrar esse ciclo, temos de estar atentos a esse problema. Por isso visitei instituições no Norte, no Nordeste. Lógico que as infraestruturas são menores, mas eles podem começar com ciências experimentais que não precisam de estruturas enormes. Há centros de física teórica em Natal [no Rio Grande do Norte] que são excelentes, que conseguem atrair pesquisadores do mundo inteiro. Ser um país continental é uma dificuldade, mas também pode ser uma vantagem.

Enquanto estiver no Brasil, continuará com o seu trabalho a respeito do envelhecimento? Há algo parecido sendo feito no país?

Meu laboratório em Lyon funcionará até o final deste ano e ainda estou tocando meu grupo por lá. Depois, pretendo ter uma atividade de pesquisa no Brasil, porque é muito complicado dirigir um instituto de apoio à pesquisa brasileira sem pesquisar no próprio país. Estou começando a procurar instituições em que eu poderia realizar atividades de pesquisa. Mas quando você é pesquisador, é pesquisador até a morte. Não adianta, você continua pensando em ciência o tempo todo.

O país vive um intenso debate sobre a aposentadoria e o futuro de uma geração que vive cada vez mais. Do ponto de vista científico, há alguma observação a ser feita?

Esse debate já aconteceu em outros países porque a expectativa de vida aumenta muito a cada ano: na França, ganham-se seis horas de expectativa de vida por dia. O bebê que nasce hoje tem uma expectativa de vida seis horas superior à do bebê que nasceu ontem. No Brasil, isso é ainda mais rápido: são nove horas por dia. Essa mudança da Previdência é inevitável, do contrário o sistema quebra mesmo. Porém, a forma de implementação da mudança é importante. Mas isso não é minha praia, deixo para os políticos [Risos].

Qual será a receita para que se possa viver mais e com melhor qualidade no futuro?

Quando começamos a pesquisar o envelhecimento, não acreditávamos que manipulações genéticas e do meio ambiente pudessem aumentar a longevidade tão facilmente. Mas não só encontramos essas várias possibilidades e modificações como identificamos tratamentos que aumentam a longevidade, a vitalidade e a qualidade de vida dos animais que envelhecem. É possível modificar o metabolismo do animal para que ele consiga ser preparado e protegido contra todos os tipos de estresse que pode encontrar durante sua vida. E o resultado disso é que ele consegue ter uma vida melhor durante muito mais tempo.

Essas modificações genéticas serão realizadas em um horizonte próximo? É possível que sejam acessíveis à maior parte das pessoas e não apenas a um grupo restrito?

Não é possível fazer modificações genéticas nos seres humanos diretamente, não é eticamente aceitável. Mas, após identificar um gene, você pode entender qual molécula deve ser produzida em maior ou menor quantidade para envelhecer melhor. A genética do envelhecimento não busca modificar o ser humano geneticamente, e sim entender melhor os processos e desenvolver remédios que tenham um impacto bom sobre o envelhecimento. Esse esforço de pesquisa visa desenhar coisas que possam ser aplicadas para todas as pessoas. Há bastante desigualdade no mundo inteiro, mas há uma única coisa em que somos todos iguais: a velhice, a morte. Se é para mudar essa dinâmica, é para mudar para todo mundo, não apenas para uma parte da população.

 (Foto: Claudio Andrade)

 

 

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