Jihad à brasileira?
O cheiro de pólvora dominava Salvador nas primeiras horas do dia 25 de janeiro de 1835. Pelas ruas da capital da Bahia, soldados foram surpreendidos pelo fogo cerrado de uma rebelião organizada por 600 africanos, a maior parte deles escravos.
Depois de algumas horas de batalha, os rebeldes foram massacrados em frente ao quartel da cavalaria da cidade. Chegava ao fim uma das principais revoltas de escravos da história da América Latina. Não por acaso, a data marcava os últimos dias do Ramadã, o mês sagrado da religião islâmica: amuletos muçulmanos e escritos com rezas e passagens do Alcorão foram encontrados entre os corpos dos insurgentes. As autoridades não tiveram dúvidas de que os malês — nome dado aos muçulmanos que sabiam ler e escrever em língua árabe — eram os líderes da rebelião.
Após quase dois séculos da Revolta dos Malês, historiadores debatem o papel da religião islâmica na organização do episódio. Apesar de alguns pesquisadores considerarem que o conflito de 1835 não foi propriamente uma jihad — ação guerreira de um Estado organizado de acordo com as leis islâmicas —, é certo que a religião foi o principal fator para o estopim do conflito. Um dos maiores especialistas no assunto, o historiador João José Reis afirma que, caso a rebelião ganhasse corpo e se tornasse vitoriosa, é provável que um governo liderado por muçulmanos de fato tomasse a frente do território baiano. A hipótese é especialmente plausível porque aproximadamente 20% dos africanos que viviam em Salvador na época eram seguidores do islã — 40% dos quase 65,5 mil habitantes da cidade eram escravos.
UNIÃO POR ALÁ
Enquanto nações europeias desenvolviam máquinas a vapor e colocavam de pé as primeiras indústrias do planeta, o Brasil ainda utilizava majoritariamente a mão de obra de escravos africanos nas suas atividades econômicas — o país foi um dos últimos do mundo a abolir a escravidão, em 1888. Como estratégia para evitar revoltas, os homens e mulheres capturados no interior da África eram levados para os navios com pessoas de diferentes etnias, o que supostamente dificultava a comunicação. Os captores, no entanto, não levaram em conta o poder agregador da religião: como um dos fundamentos do islã é a leitura do Alcorão, a maioria dos muçulmanos era alfabetizada, o que facilitou a interação entre aqueles que chegavam juntos à cidade de Salvador.
Apesar de ser a rebelião mais conhecida do período, a Revolta dos Malês não foi o único episódio em que escravos muçulmanos se levantaram contra seus captores. Entre 1807 e 1821, ocorreu na Bahia uma série de revoltas lideradas pelos haussás, etnia que vivia na porção norte do território que atualmente compreende a Nigéria. Em uma rebelião de 1814, os sublevados — alguns montados a cavalo — enfrentaram as armas de fogo das tropas do governo com flechas, foices e machados. “Os revoltosos da Bahia tentaram adotar táticas semelhantes àquelas das guerras de sua terra natal”, afirma João José Reis, que é professor de História da Universidade Federal da Bahia e autor do livro Rebelião Escrava no Brasil — A História do Levante dos Malês de 1835.
De acordo com os pesquisadores, o fracasso desses levantes não se deu apenas pelo uso de estratégias inadequadas para a realidade baiana (os soldados brasileiros já usavam armas de fogo), mas também porque muitos muçulmanos envolvidos nos conflitos não eram guerreiros treinados. “Os prisioneiros de guerra vendidos como escravos para a Bahia foram vítimas dos dois lados. Nem todos eram combatentes, e o mais provável é que a maioria — os perdedores, no caso — não o fossem”, avalia Reis.
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GUERRA TIPO EXPORTAÇÃO
Se a religião islâmica foi responsável por inspirar rebeliões, a jihad tem relação direta com a captura dos homens e mulheres que desembarcaram no Brasil como cativos. Entre 1804 e 1808, o líder religioso islâmico Usman dan Fodio, da etnia fulani, iniciou uma guerra santa no território que hoje é a Nigéria para “corrigir” as práticas dos membros da etnia haussá: é que, apesar de serem fiéis à religião muçulmana desde o século 15, os haussás ainda conservavam alguns ritos de suas crenças ancestrais.
A guerra teve vitória esmagadora dos fulanis e resultou na criação de um império conhecido como Califado de Sokoto. A partir dele, as cidades-estados da região da Haussalândia foram unificadas e os reis, substituídos por califas fiéis a dan Fodio. Com a jihad, os povos derrotados se tornaram escravos dos vitoriosos, o que gerou um grande contingente de pessoas vendidas aos mercadores e enviadas para o exterior. O principal destino desses cativos era o Brasil.
Durante os séculos 19 e 20, a dominação imposta por países da Europa ao território africano intensificou as tensões étnicas e religiosas pelo continente. As potências europeias não levavam em conta as particularidades das regiões conquistadas e com frequência reuniam antigos inimigos em um mesmo país. Em parte, isso explica por que, após a Segunda Guerra Mundial, o processo de independência das nações africanas foi acompanhado de guerras e disputas internas de poder.
Hoje, apesar do desenvolvimento econômico em alguns países do continente, a situação ainda não está completamente estabilizada. Em 2002, o grupo Boko Haram foi fundado no norte da Nigéria e se inspira nos ideais do califa Usman dan Fodio para combater a influência ocidental e implantar um Estado muçulmano, que governaria de acordo com a interpretação fundamentalista do Alcorão. “O estilo de jihad que tomou a região no início do século 19 não tinha esse caráter de violência extrema e indiscriminada que se vê no Boko Haram. Havia a guerra de conquista, mas também havia mais tolerância em relação aos que abraçavam outras formas de religiosidade, como os adeptos do bori [inspiração do candomblé]”, afirma João José Reis. A história mostra, afinal, que a religião nem sempre é um instrumento para a libertação dos povos.
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