Meu professor é nazista
A região do Vale do Itajaí, no norte de Santa Catarina, acordou agitada naquele 2 de dezembro de 2014. Sequestradores haviam raptado o marido da gerente de uma agência bancária de Rio dos Cedros, na tentativa de obrigar a mulher a abrir o cofre. A missão do comandante de helicóptero Humberto Damásio Costa na ocorrência era levar uma equipe da Diretoria Estadual de Investigações Criminais (Deic) de Florianópolis até Rio dos Cedros.
No final do trajeto de quase 140 quilômetros, porém, o acaso fez com que o piloto produzisse o acontecimento mais importante do dia, atraindo a atenção nacional para o Vale do Itajaí por um motivo alheio à tentativa frustrada de roubo a banco. “Quando eu estava cruzando Pomerode, no alto de uns morros avistamos uma casa onde deu para ver o que parecia ser uma suástica. Aproximei e vimos a cruz no fundo da piscina. Pedi para meu copiloto tirar uma foto e seguimos viagem”, relata Humberto.
O crime acabaria não se consumando, e o casal foi libertado no final da manhã. Mas a foto virou notícia nacional. Feita de um celular do alto do helicóptero, a imagem mostrava uma casa na zona rural de Pomerode. Ao fundo da piscina, azulejos em azul escuro formavam o desenho de uma suástica em contraste com o azul mais claro. Humberto mostrou a imagem a repórteres que estavam em frente à Delegacia de Rio dos Cedros cobrindo o sequestro. A imagem foi publicada e viralizou. As atenções se voltaram a Pomerode, “a cidade mais alemã do Brasil”, e a um personagem bastante conhecido na região.
O pequeno município de 31 mil habitantes fica a 169 quilômetros da capital Florianópolis. Sua origem remonta à chegada, em 1863, de imigrantes oriundos da antiga Pomerânia, mas sua fundação é recente: emancipou-se de Blumenau em 1959.
Foi na localidade de Pomerode Fundos, zona rural do município, que Wandercy Antônio Pugliesi, um conhecido professor de História em colégios de Blumenau, decidiu construir sua piscina. Wander, como é chamado, já havia sido assunto nacional 20 anos antes de sua suástica ser fotografada. Em fevereiro de 1994, ele apareceu numa reportagem do Fantástico, da TV Globo, mostrando sua coleção de documentos e objetos sobre o nazismo. No ano seguinte, seria capa do jornal Zero Hora, exibindo um quadro de Adolf Hitler diante de uma estante de livros. Alguns deles, de uma controversa editora gaúcha que publicava livros revisionistas sobre o Holocausto, a Revisão.
O exibicionismo lhe rendeu um revés na Justiça. Em 1998, a pedido do Ministério Público Federal, sua coleção foi apreendida. De acordo com o MPF, havia “livros, quadros, revistas, cartões postais, gravuras do exército alemão, objetos com a cruz suástica, além de uma camiseta (estampada com a figura de Adolf Hitler)”. Pugliesi também foi denunciado à polícia, mas o inquérito foi arquivado porque a apologia ao nazismo só passou a ser crime depois de 1997. A coleção, porém, permaneceu apreendida. Wander tentou reavê-la alegando que os materiais eram utilizados para estudo, e não para divulgação de ideias nazistas. Mas em 2001 o Tribunal Regional Federal negou o recurso.
“Estão tentando te enganar”
Isso era o que o resto do Brasil sabia sobre Wander. No Vale do Itajaí, ele era o professor carismático e piadista, daqueles que marcam a vida de um estudante. Ex-alunos se dividem entre a crítica e a idolatria. “Ele já tinha uma fama. Tu ia preparado para ter aula com uma pessoa meio simpática ao nazismo”, diz a jornalista Melissa Schröder, hoje com 26 anos. Em 2008, em Blumenau, ela teve aula de História no “terceirão” do Colégio Energia, uma rede de escolas de Ensino Médio com foco no vestibular espalhada por várias cidades catarinenses.
Parte da fama vinha do filho de Wander, batizado como… Adolf. Em 2015, Adolf Roders Pugliesi se formou Cadete na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) – o pai chegou a cursar a Escola Preparatória de Cadetes do Exército, segundo pessoas próximas. Hoje, Adolf é segundo tenente do Exército e atua num Regimento no oeste de Santa Catarina. Na época em que Melissa ingressou no Colégio Energia, Adolf cursava o terceirão. “O Wander era o típico professor carismático de cursinho, que te envolve na matéria. Na arte de ser professor, ele era bom. O problema era o conteúdo. Ele vê tudo do ponto de vista nazista e vai te ensinar História. Que adolescente vai questionar?”, afirma Melissa.
Wander não fazia pregação nazista em sala de aula, mas relativizava o Holocausto, por exemplo, comparando com o número de alemães e russos mortos na 2ª Guerra. “Eu achava esquisito. Mas os alunos se revoltavam com a posição? Nem um pouco. Era um cara adorado por vários alunos”, conta. O relato é parecido com o de Tatiane Scoz, hoje professora de Sociologia. Em 2000, aos 19 anos, ela teve aula com Wander e lembra que o professor justificava o nazismo e questionava informações sobre o massacre dos judeus. “Dizia que havia controvérsias sobre o Holocausto e que havia um motivo econômico para Hitler fazer o que fez, como se justificasse”, relata. “Estão tentando te enganar” era um dos bordões mais famosos do professor. A frase era usada sempre que Wander queria dizer aos alunos que a história não era bem assim como lhes ensinavam.
Valia para dizer que Dom Pedro 1o havia gritado “Independência ou Morte” montado em um burro, e não em um cavalo como na pintura de Pedro Américo. Valia também para o nazismo. Wander manifestava posições conservadoras para além da questão do nazismo. Temas como a Ditadura Militar e os governos de esquerda na América Latina entravam no seu radar de opiniões. Uma entrevista de 2014 à rádio Nereu Ramos, de Blumenau, em que defendeu o regime militar, circula até hoje nas redes sociais.
Para Tarnie Montibeler, 26 anos, formado no Energia em 2008, Wander foi um dos melhores professores com quem já teve aula. “O que eu mais gosto dele é essa forma de despertar o senso crítico dos jovens, mostrar que nem sempre o que se conta é o que realmente aconteceu. Claro que ele ensinava o conteúdo estabelecido, até porque o Energia era totalmente voltado ao vestibular, que não é espaço para revisionismo. Mas ele sempre falava nas entrelinhas, deixando entender que não era bem assim”, afirma o hoje bacharel em Processos Gerenciais. “Ele abriu muito a minha cabeça e de alguns amigos. Posso dizer que devo parte do meu senso crítico a ele.”
A admiração é tanta que nem a notícia sobre a suástica na piscina mudou a percepção sobre o professor. “Acredito que isso possa ter decepcionado e ofendido muita gente, embora a suástica não deva ser relacionada somente ao nazismo. Mas honestamente tive um ano de aulas maravilhosas com ele. Não me permitiria desconstruir a admiração que possuo pelo Wander por uma coisa que ele tem dentro da casa dele”, afirma a nutricionista Yanna Arante, 29 anos, aluna de Wander em 2005. Em 2002, em uma formatura lembrada até hoje por ex-alunos do Energia, os alunos decidiram erguer a mão direita, reproduzindo a saudação nazista em “homenagem” ao professor de História. “Foi uma forma de homenagem ao professor, na nossa visão de 17 anos de idade e pouco conhecimento histórico. Demorei anos para entender o que se passava ali”, diz Larissa Beppler, hoje empresária em São Paulo.
Wander não chegou nem a ser alvo de inquérito pela suástica na piscina. Na época, o delegado de Pomerode, Luiz Carlos Gros, disse não ver ilegalidades no caso. O Ministério Público também não ofereceu denúncia contra o professor. O texto da Lei 9.459, de 1997 estabelece como crime “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do
nazismo”. No quintal de uma residência, nos fundos de uma piscina, a suástica do professor Wander não foi encarada como uma divulgação do nazismo.
O professor segue dando aulas em Blumenau, mas já não atua mais no Energia, cuja direção preferiu não falar à reportagem. Há seis anos, o professor dá aulas no cursinho Acesso, da mesma cidade, onde é tido como uma pessoa de “índole irrefutável e qualidade docente inquestionável”, nas palavras do diretor Felipe Grillo. O professor não respondeu aos pedidos de entrevista.
O passado condena
A história do Vale do Itajaí, onde fica Pomerode e a piscina da suástica, foi marcada pela presença do nazismo na primeira metade do século 20. Antes de Hitler assumir o poder na Alemanha, em 1933, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP, na sigla em alemão) já havia se instalado na região, resultado da forte imigração alemã, cujas marcas são visíveis ainda hoje na arquitetura e hábitos locais. A primeira célula do Partido Nazista no exterior foi fundada no ano de 1928 em Timbó, município localizado a cerca de 15 quilômetros da piscina de Wander. Entre as décadas de 1930 e 1940, Santa Catarina era o segundo Estado brasileiro com maior número de filiados ao Partido Nazista, atrás de São Paulo.
O passado ajudou a fortalecer um ideário nazista em Santa Catarina, onde as posições de Wander são toleradas e até mesmo idolatradas? Pelo menos uma pesquisa sugere que sim. Entre 2002 e 2009, a antropóloga Adriana Dias fez um estudo em 40 sites neonazistas e verificou que o maior número de acessos vinha de Santa Catarina. Eram 45 mil no total, contra 42 mil do Rio Grande do Sul, 29 mil de São Paulo, 18 mil do Paraná e 8 mil do Distrito Federal. Na época em que a piscina do professor foi revelada, os dados foram usados em reportagens cujas manchetes atestavam que Santa Catarina é “o Estado mais nazista do Brasil”.
Wander não está sozinho. No dia 20 de abril de 2014, meses antes de a piscina com suástica ser revelada, cartazes em homenagem ao aniversário de Hitler foram afixados em um poste próximo à Igreja Matriz da cidade de Itajaí, a 90 km de Pomerode. A Polícia Civil identificou Kaleb Rodrigo Frutuoso e Fabiano Antônio Schmitz como responsáveis pela ação, e os dois foram presos. A Promotoria de Justiça de Itajaí ofereceu denúncia contra a dupla com base na Lei de Crime Racial. O processo aguarda as alegações finais dos acusados. De acordo com a Polícia Federal em Santa Catarina, desde 2012 foram instaurados nove inquéritos para apurar fatos relacionados ao neonazismo – a PF não detalha os casos.
Frutuoso foi eleito, em 2010, para a direção do movimento O Sul é o Meu País, que defende a separação dos Estados do Sul do resto do Brasil. O grupo se tornou um ímã para defensores de ideias que, no mínimo, flertam com o racismo. De acordo com o jornalista e ex-presidente do movimento, Celso Deucher, Frutuoso nem chegou a tomar posse como integrante do conselho fiscal, e teria participado de apenas uma assembleia, sendo afastado após verificar-se que ele estava envolvido em atividades neonazistas na internet. “Após os eventos de Itajaí, tivemos a certeza de que se tratava de mais uma ação de elementos infiltrados dentro do movimento O Sul é o Meu País”, afirma Deucher.
Isolamento
A existência de um movimento separatista que atrai admiradores de Hitler ajuda a reforçar a fama neonazista dos Estados sulistas. Esse sentimento de que o povo sulista é “diferente” do brasileiro pode ter sido fortalecido pela geografia. No começo do século 20, o Vale do Itajaí vivia isolado do resto do País. De acordo com a diretora do Arquivo Histórico de Blumenau, Sueli Petry, entre 1904 e 1908 havia 120 escolas alemãs na região e apenas quatro em língua portuguesa. “O governo não dava atenção. As escolas que havia eram da comunidade evangélica, que tiveram forte influência. Qual era o grande pensamento evangélico? A língua, a religião, o sentimento pátrio. Foi o que tivemos aqui”, diz Sueli. “Vivíamos numa região onde a germanidade era muito forte”, diz.
A imprensa ajudava a propagar a ideologia nazista. Os jornais catarinenses mais importantes da época saudavam os feitos de Hitler, com a exceção de O Estado, de acordo com o professor de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) Luiz Felipe Falcão. “Para entender isso, é preciso levar também em conta o grande temor do comunismo patrocinado pela União Soviética num ambiente de forte coloração rural pautada na pequena propriedade da terra, no trabalho da família e no apego à religiosidade. Ou seja, tudo aquilo que, aparentemente ao menos, era o inverso do maldito comunismo”, aponta. No Rio Grande do Sul, outro Estado fortemente marcado pela imigração alemã, casos semelhantes ao de Wander são recorrentes.
O mais recente ocorreu em Porto Alegre. No dia 23 de março, a Escola Estadual Paula Soares recebeu uma estudante de Filosofia da PUCRS para lecionar para uma turma do terceiro ano do Ensino Médio como parte do estágio acadêmico obrigatório. Durante a aula, a professora titular deixou a sala. A estagiária aproveitou que estava sozinha com os alunos, anunciou que era nazista e ordenou que eles fizessem a saudação hitlerista com o braço. A ordem não foi bem aceita, os alunos protestaram, e a estagiária teria agredido uma adolescente com um puxão de orelha e um tapa. O caso foi parar na direção da escola e na polícia, que não deu mais detalhes ou divulgou o nome da acusada. A Secretaria Estadual de Educação cancelou o estágio da estudante, e o caso segue em investigação. “Ela falou que foi criada assim e que sempre agiu dessa forma”, disse a diretora da escola, Genecy Cegala, ao jornal Zero Hora.
Porto Alegre também foi sede da Revisão, a editora de Siegfried Ellwanger Castan, nascido no ano de 1928 em Candelária, município de colonização alemã localizado na região central do Rio Grande do Sul. O controverso personagem ficou conhecido nos anos 1980, depois que movimentos de direitos humanos o denunciaram por propagar conteúdo racista em seus livros. Entre os títulos, livros como Holocausto: Judeu ou Alemão – Nos Bastidores da Mentira do Século e Acabou o Gás!… O Fim de um Mito. Julgado e condenado, continuou divulgando seus livros, que inclusive faziam parte do acervo de Wander apreendido em Pomerode. Em 2003, o Supremo Tribunal Federal manteve a condenação do editor por crime de racismo. Ainda hoje é possível comprar livros da editora Revisão pela internet. Siegfried morreu em 2010.
Prudência
Apesar da recorrência dos relatos, historiadores são cautelosos ao analisar conexão entre a imigração alemã e uma suposta tolerância cultural ao nazismo no Sul. O risco, segundo eles, é criar um novo preconceito contra os descendentes de alemães. “Não é compreensível penalizar a imigração alemã pela forma como neonazistas, que muitas vezes não têm relação com esse fenômeno, visualizam esse processo”, diz Odilon Caldeira Neto, pesquisador da PUCRS. Para o professor Luiz Felipe Falcão, da Udesc, o sentimento difuso de simpatia ao nazismo é verificado em diversos países e tem mais a ver com a realidade política e sociocultural de cada local. “Não existe maior simpatia pelo nazismo em Santa Catarina do que na Avenida Paulista ou na zona sul do Rio”, diz.
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