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Paleontólogos brasileiros tentam converter as mineradoras para a ciência

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Cerca de 62 milhões de anos atrás, as praias do Nordeste brasileiro não tinham nada de paradisíacas. A vida começava a se recuperar após a grande extinção que eliminou mais de 70% das espécies do planeta, inclusive os dinossauros. O ambiente era inóspito e de alta competição por recursos. Não por acaso, uma feroz tartaruga que dominou essas águas pré-históricas foi batizada de Inaechelys pernambucensis, que quer dizer rainha do mar de Pernambuco.

Identificada por um time de paleontólogos brasileiros em um artigo publicado em junho do ano passado, essa pernambucana ancestral ajudará a entender melhor como e por que alguns bichos conseguiram prosperar em circunstâncias tão difíceis. Um feito e tanto para um fóssil que quase foi destruído como resíduo industrial. Os vestígios da Inaechelys foram encontrados em uma pedreira a 30 quilômetros ao norte de Recife onde, em 2009, cientistas descreveram outra importante espécie: o crocodilomorfo bom de briga Guarinisuchus munizi. Além deles, o solo rico em calcário da região tem registros de fósseis de diversos animais pré-históricos, incluindo peixes, tubarões, arraias e outras tartarugas. Tesouros que, hoje, só conseguem chegar até os paleontólogos por meio das minas.

Por conta da composição química do solo, das temperaturas e de outros fatores ambientais, muitas das áreas de interesse para os cientistas são também pontos com forte presença extrativista. Apesar do interesse comum em explorar o que existe nas camadas mais profundas do solo, paleontólogos e mineradores têm poucas afinidades. Enquanto as empresas costumam ver os fósseis como sinônimos de atraso nos cronogramas e possíveis embargos às obras, muitos pesquisadores consideram as atividades extrativistas como meras destruidoras de vestígios.

Um time de paleontólogos — a maioria vinculada a universidades do Nordeste — tenta, porém, vencer resistências e criar um sistema de cooperação benéfico para os dois lados. A iniciativa, que começou com parcerias informais e encontros para sensibilização das empresas da região, também se articula com autoridades e instituições de pesquisa para tentar incorporar na legislação incentivos e obrigações para as mineradoras.

“É uma ideia relativamente simples, mas que poderia mudar completamente a maneira pela qual as empresas tratam os fósseis no Brasil”, diz a líder da iniciativa, Alcina Barreto, professora de paleontologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Criar uma estratégia estruturada de cooperação poderia aumentar, e muito, os acervos de fósseis disponíveis no país, tanto para a pesquisa como para exposição em museus.”

Para tentar evitar que os fósseis sejam destruídos ou cheguem ao mercado negro — onde um exemplar bem preservado de pterossauro, réptil voador contemporâneo dos dinos, pode valer US$ 80 mil —, o grupo adotou como estratégia o foco na conscientização. Além de abordarem pessoalmente as empresas, promovem palestras e sessões de esclarecimentos à população, incluindo os trabalhadores — muitos com pouca escolaridade e total desconhecimento do valor científico do material.

“Parece fácil, mas há uma resistência enorme entre os mineradores. Muitas vezes, quando nós os abordamos, eles ficam com receio, principalmente os proprietários das pequenas minas. Para eles, o paleontólogo é alguém que vai perceber que há fósseis na mina e vai fazer uma denúncia para embargar a obra”, conta Tito Aureliano, pesquisador da UFPE e um dos criadores do maior canal de paleontologia do Brasil no YouTube, o Colecionadores de Ossos, com mais de 11 mil inscritos.

Os pesquisadores relatam que o desconhecimento ou a falta de motivação para preservação faz com que muitas minas optem por destruir intencionalmente os vestígios fósseis encontrados, que não raro são de espécies ainda desconhecidas. “Eles pensam que assim estão se livrando de um problema, mas ao destruir os fósseis estão não só fazendo algo criminoso como também impedindo que uma parte importante do passado seja conhecida”, afirma Aureliano.

O grupo concentra boa parte de seu trabalho na Chapada do Araripe, região na fronteira entre Pernambuco, Piauí e Ceará. O local tem sua importância reconhecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, a Unesco, e foi de lá que saiu mais de um terço de todas as espécies descritas de pterossauros. A zona tem minas de diferentes perfis, desde pequenos empreendimentos familiares até grandes conglomerados internacionais. Pela alta concentração de calcário e gipsita, o Araripe é particularmente importante para a indústria de gesso. Aproximadamente 90% da produção nacional desse material vem de lá.

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VANTAGENS

Para quem olha de fora, vasculhar a terra em busca de dinossauros e outros animais fossilizados pode até parecer simples, mas as atividades costumam ser trabalhosas e custam caro. Em um cenário de contingenciamento de recursos para a pesquisa — o orçamento do governo federal para a ciência vem diminuindo desde 2013 —, é cada vez mais difícil reunir a verba necessária para manter um bom ritmo de trabalhos de campo.

“Nós gostaríamos muito de dispor de todo o tempo e dos recursos necessários, mas isso está distante da realidade. Enquanto isso, diariamente as mineradoras escavam o solo e se deparam com uma grande quantidade de fósseis que dificilmente seriam acessíveis para nós”, explica Barreto.

Aline Ghilardi, também professora da universidade, concorda com a colega. Para ela, há tantas dificuldades técnicas e financeiras para conseguir fazer pesquisa no Brasil que um trabalho sério e sistemático de parceria com as mineradoras permitiria um salto de quantidade e qualidade.

“Faria uma diferença incrível, não tenho dúvida. Mesmo hoje, com o nosso trabalho de formiguinha, de parcerias informais com as empresas, já conseguimos muita coisa”, diz Ghilardi, que nos últimos anos publicou vários artigos com base em fósseis recuperados por mineradoras. O último deles revela a existência da tartaruga pernambucana citada no começo da reportagem, identificada na Pedreira Poty.

Também foi graças a uma parceria — com a Pedreira São Bento, de Araraquara (SP), que já encerrou suas atividades — que o Brasil conseguiu sua maior coleção de pegadas de dinossauros. “Encontrei muita coisa fantástica que estava prestes a ir para o lixo”, conta Marcelo Adorna Fernandes, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) que, além das pegadas, usou material coletado na mina para descrever pela primeira vez um urólito, marca de “poça de xixi” que se formava no solo sempre que um dino precisava se aliviar.

“O trabalho foi muito produtivo, mas, à medida que fomos avançando e passamos a precisar de mais material, ficou mais difícil. E eu entendo, pois o material retirado por nós não poderia mais ser comercializado, e eles tiveram gastos para extrair, cortar e transportar isso”, relata Fernandes, ressaltando a importância de avançar do modelo de acordo verbal para uma relação com deveres e direitos claros.

Professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), o paleontólogo Felipe Pinheiro conta já ter tido experiências tanto negativas quanto positivas ao lidar com as minas. Segundo ele, é fundamental incluir nos programas de conscientização não somente os proprietários, mas também os trabalhadores.

“Dependendo da abordagem, o minerador, via de regra, pessoa muito simples, vai ser mais ou menos receptivo à ‘intromissão’ de um cientista em seu trabalho. Aos poucos, ganhando confiança, eles geralmente mostram os fósseis encontrados naquele dia e acabam doando alguns, mais comuns. Ninguém sabe melhor do que eles o que é ou não comum e o que teria maior valor comercial no mercado ilegal”, relata o pesquisador, que não tem relação com o grupo que tenta incentivar as parcerias.

ACEITAÇÃO

Do lado das mineradoras, os benefícios podem ser menos óbvios, mas já têm conseguido atrair a atenção das companhias, interessadas em associar suas imagens a boas práticas sociais e científicas.

“Para nossa empresa, achamos essas visitas [de paleontólogos] muito importantes, tanto para uma troca de conhecimento como para que a mineração seja mais conhecida em todos os seus processos”, diz o engenheiro de minas Marcelo Dall’Antonia, da Calcário Amaral Machado, consultor da área no interior de São Paulo. Segundo ele, que recebe estudantes nos locais de extração, quando há organização, a mineração e a pesquisa podem coexistir. “Todas essas visitas são agendadas e programamos para que tanto estudantes como pesquisadores possam realizar seus estudos com tranquilidade. Na maioria das vezes, estamos trabalhando em mais de uma frente de lavra, então as visitas com certeza podem ser conciliadas com a nossa atividade”, avalia.

Já a Votorantim Cimentos, instalada em uma das áreas de maior interesse científico da região do Araripe — um ponto de encontro de camadas de duas eras geológicas —, se prepara para testar um grande projeto de cooperação cultural e científica: a inauguração de um geossítio aberto ao público em uma área antes pertencente a seu perímetro de extração.

“A iniciativa de desenvolver um geossítio representa um grande desafio para a empresa e certamente beneficiará toda a sociedade. A parceria com a universidade vem ao encontro de um objetivo comum, de recuperar testemunhos paleontológicos relevantes, que seriam inacessíveis sem a mineração e que podem ampliar o conhecimento geológico e fomentar a pesquisa científica”, diz Nelson Tsutsumi, gerente global de mineração da Votorantim Cimentos. A previsão é de que o local seja aberto ao público em meados do primeiro semestre deste ano.

Apesar do resultado muitas vezes bem-sucedido das parcerias, há quem veja o movimento com ceticismo. É o caso de Alexander Kellner, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), considerado o “rei dos pterossauros”, com mais de 30 espécies descritas no mundo. Para ele, a solução seria a obrigatoriedade de contrapartidas por parte das empresas.

“Pela minha experiência, não existe muito interesse dos mineradores em trabalhar com pesquisadores por conta do medo de denúncias de que eles estejam destruindo fósseis. Já aconteceu antes — tanto a destruição de fósseis quanto denúncias por parte de paleontólogos —, o que acarretou a falta de cooperação entre mineradores. Como resolver o problema? Tornando isso algo obrigatório”, avalia Kellner.

LEGISLAÇÃO

Os especialistas fazem uma crítica unânime à legislação vigente no setor, considerada obsoleta e insuficiente. A regulação e fiscalização dos fósseis no Brasil é regida por um decreto de 1942, época do chamado Estado Novo, quando Getulio Vargas era presidente. Eles são considerados propriedade da União e não podem ser comercializados. Cabe ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), uma autarquia vinculada ao Ministério de Minas e Energia, a responsabilidade de zelar por esse patrimônio. Questionado pela reportagem sobre medidas oficiais de fiscalização e fomento, o DNPM não respondeu ao contato.

“É muita coisa, o órgão fiscalizador está sobrecarregado e não consegue dar conta”, diz a paleontóloga Alcina Barreto, que defende ainda a necessidade da reforma do marco regulatório da mineração, que também interfere na atividade paleontológica. A última tentativa de reforma desse código está parada no Senado há dois anos devido a divergências sobretudo entre mineradoras, ambientalistas e militantes da causa indígena, cujas terras muitas vezes estão em áreas de interesse de exploração.

Barreto propõe a criação de um cargo adicional nas minas: o técnico em paleontologia, profissional treinado — não necessariamente com formação superior — que acompanharia as extrações e identificaria os fósseis com potencial científico. Embora a proposta já tenha sido apresentada em alguns congressos e reuniões com autoridades, a professora reconhece que as discussões têm andado paradas. A despesa adicional com a contratação do técnico é um dos grandes empecilhos à ideia.

Os paleontólogos também defendem que o Brasil deve se inspirar em alguns exemplos considerados positivos, como o da Argentina, que exige contrapartidas em termos de pesquisa para quem realiza atividades de mineração. Um exemplo sugestivo dos resultados dessa política foi a descoberta no país vizinho, em 2011, de uma espécie de dinossauro inédita financiada com verbas de contrapartida pagas pela Petrobras por mineração.

Batizado em homenagem à estatal brasileira, o Petrobrasaurus ironicamente é um grandalhão argentino: um titanossauro de cerca de 22 metros e até 35 toneladas que viveu há 85 milhões de anos na Patagônia. “Olha a quantidade de mineração que a Petrobras faz no Brasil. Por que é que não existe o petrossauro brasileiro?”, questiona o paleontólogo Tito Aureliano.

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SOLO EM DISPUTA

Chapada do Araripe, no Nordeste, é uma das regiões do Brasil mais disputadas por cientistas e mineradores. O local tem solo rico em calcário e gipsita — e também em fósseis. Lá foi encontrada boa parte de todas as espécies conhecidas de pterossauros

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FILHA DE ESCAVAÇÃO

Inaechelys pernambucensis - O nome significa “rainha do mar de Pernambuco”
Foi achada na Pedreira Poty (30 km ao norte de Recife)

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Tamanho: Cerca de 50 cm
Alimentação: Carnívora
Importância: A espécie foi uma sobrevivente em uma época em que vários bichos muito maiores desapareceram. Estudá-la pode ajudar a compreender como a vida se recuperou após a grande extinção ocorrida no fim do Cretáceo

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FILHO DE ESCAVAÇÃO

Petrobrasaurus puestohernandezi - O nome cita a Petrobras e o local de descoberta
Foi achado em Puesto Hernández, na Patagônia argentina

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Tamanho: Cerca de 22 metros e até 35 toneladas
Alimentação: Herbívora
Importância: Seu estudo pode ajudar a entender a separação da América do Sul e da África

LEGISLAÇÃO JURÁSSICA

O decreto que rege a fiscalização dos fósseis no Brasil tem 75 anos. Começou a valer em 1942

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