Revolução Russa: tudo o que você precisa saber sobre o período
“O inverno, o terrível inverno russo chegava. Sem o menor entusiasmo, os soldados sofriam e morriam na linha de frente. As fábricas fechavam suas portas.” Como descreve o jornalista norte-americano John Reed em seu livro Dez Dias que Abalaram o Mundo (Penguin e Companhia das Letras, 504 páginas), a Rússia de 1917 bem que poderia ser o cenário para o roteiro de Game of Thrones.
Os acontecimentos testemunhados por Reed, no entanto, diziam respeito a questões mais urgentes que as intrigas dos Sete Reinos de Westeros. O quadro de destruição e fome generalizada, causado pela Primeira Guerra Mundial, motivou a organização de trabalhadores da cidade e do campo para derrubar a monarquia russa e dar início a uma nova etapa da história mundial.
“Não gratuitamente, a revolução de outubro suscitou — e ainda suscita — grandes paixões: ela mudou a história do século 20”, afirma o historiador Daniel Aarão Reis, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). De acordo com o pesquisador, além de extinguir a propriedade privada em um país de porte continental, a revolução desafiou o sistema capitalista e dividiu o movimento socialista. “Ela inaugurou um novo padrão de socialismo, autoritário e estatista, que hegemonizou as revoluções socialistas que viriam em seguida.”
Depois de mais de 26 anos do fim da União Soviética, especialistas estudam os capítulos da Revolução Russa para entender os sonhos, crimes, realizações e traições da primeira tentativa na história contemporânea de organizar uma sociedade sem exploradores nem explorados.
CONTRA O CAPITAL
Ao contrário do que Karl Marx previra, a revolução de trabalhadores aconteceu em um país atrasado
As obras teóricas do alemão Karl Marx estão mais para longos tratados econômicos do que escritos apaixonados sobre revoluções. O pensador deixou poucos indícios do que seria sua visão de uma sociedade organizada pelo modo socialista de produção: O Capital, publicado em 1867 e considerado a obra-prima do alemão, é o resultado de um profundo estudo sobre o funcionamento do capitalismo, como o próprio título sugere.
Mas se alguém contasse a Marx que o Império Russo seria o palco de uma revolução que utilizaria seu pensamento como base teórica, ele tomaria o maior susto. Em suas reflexões, o alemão acreditava que a revolução socialista seria forjada em países que já tivessem as bases capitalistas bem desenvolvidas, com uma classe operária organizada e forte, como em nações da Europa Ocidental.
No caso da Rússia do início do século 20, o quadro econômico era mais próximo do feudalismo do que de uma pujante sociedade industrial e moderna. Governada por uma monarquia centenária que concentrava seus poderes de maneira despótica, a sociedade russa era majoritariamente camponesa. Coroado em 1894, o czar (título dado aos monarcas russos) Nicolau 2º, da dinastia Romanov, iniciara um processo de modernização no país com a instalação de fábricas e tentativas de melhorias sociais — a expectativa de vida no império era de 39 anos, inferior à da Grã-Bretanha (52 anos) e do Japão (51 anos).
“São Petersburgo, a mais europeia das cidades russas, concentrava um grande número de unidades fabris, e essa massa proletária foi o sujeito político da revolução”, afirma Maria Lygia Quartin de Moraes, professora do Departamento de Sociologia da Unicamp.
Nascido em 1870, Vladimir Ilyich Ulyanov estava atento às mudanças sociais que emergiam na Rússia. Sob o codinome Lenin, ele foi um dos líderes do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), que seria dividido em dois grupos políticos a partir de 1903. Ao lado de Lenin, os bolcheviques (“maioria” em russo) refutavam as posições dos mencheviques (“minoria” em russo), que acreditavam em uma revolução burguesa e uma etapa capitalista na Rússia antes da transição para uma sociedade socialista.
“Em seus argumentos a favor da insurreição de outubro de 1917, Lenin se mostrava convencido de que a revolução na Rússia seria um prólogo de uma revolução europeia socialista, sem a qual os revolucionários russos estariam perdidos”, diz o professor Daniel Aarão Reis, organizador do livro Manifestos Vermelhos e Outros Textos Históricos da Revolução Russa (Penguin e Companhia das Letras, 484 páginas).
CAMPONESES, UNI-VOS!
Distribuição populacional do Império Russo em 1914
O ENSAIO DA REVOLUÇÃO
Em 1905, massacre motivou greves contra o czar
Uma disputa por territórios do Leste Asiático foi responsável pela primeira rachadura no poder da dinastia Romanov: em 1904, o Império Russo acreditava que conseguiria uma vitória fácil contra os soldados “inferiores” do Império Japonês. Não poderiam estar mais enganados. Além da série de derrotas humilhantes impostas pela marinha japonesa, o czar teve de enfrentar greves nas fábricas que produziam armas para a guerra.
Em janeiro de 1905, uma multidão se dirigiu aos portões do Palácio de Inverno, em São Petersburgo, entoando hinos religiosos e canções de exaltação ao czar, enquanto pediam melhorias nas condições de vida. O resultado do protesto foi um massacre comandado pelas tropas imperiais que resultou em mais de 200 mortos. Irromperam distúrbios no campo e greves nas fábricas, e foram formados os primeiros sovietes (“conselhos” em russo), constituídos para organizar os trabalhadores.
O FIM DA MONARQUIA
Após o término da 1ª Guerra Mundial e a vitória da Revolução Russa, um conflito civil dividiu o território do país — a maior extensão de terras do planeta
1913
1945 - União Soviética
REVOLUÇÃO RUSSA E A GUERRA CIVIL (1917-1922)
GUERRA E PAZ?
Conflito mundial acelerou a queda do Império Russo
Depois do “ensaio geral” revolucionário de 1905, Nicolau 2º propôs a criação de partidos e de um parlamento — que não tiveram poder efetivo. Com o início da 1ª Guerra Mundial, em 1914, o Império Russo se aliou a franceses e britânicos, sofrendo perdas humanas e materiais: pelo menos 2 milhões de soldados russos morreram durante o conflito.
Cansadas da guerra e da escassez, multidões tomaram as ruas de Petrogrado (antiga São Petersburgo) após receberem a notícia de que ocorreria um novo racionamento de suprimentos. Em março de 1917 (ou fevereiro no antigo calendário russo), a mobilização popular — apoiada pelo exército — culminou com a abdicação do czar, que seria substituído pela formação de um governo provisório.
PODER POPULAR
Fracasso do governo provisório permitiu a revolução bolchevique
O fim da monarquia não foi capaz de atender às demandas do povo russo. Vladimir Lenin, que estava exilado da Rússia, retornou ao país em abril de 1917 e percebeu uma oportunidade para a tomada do poder. “A corrente bolchevique entendeu que era possível uma transição socialista com base operário-camponesa por meio dos conselhos que eram formados, os sovietes”, afirma o professor Luis Fernandes, do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Os bolcheviques propuseram a imediata retirada russa da guerra, a reforma agrária e medidas emergenciais para garantir o abastecimento de bens de primeira necessidade.”
Fortalecidos pelos mais de 1,4 mil sovietes no país, os bolcheviques conquistaram o poder central da cidade de Petrogrado em outubro de 1917 (novembro no antigo calendário russo).
JOGO DO TRONO VERMELHO
Cisões internas, assassinatos e intrigas marcaram a disputa pelo poder após a revolução soviética
Chegar ao poder em 1917 foi relativamente fácil. O desafio verdadeiro de Lenin e dos bolcheviques seria realizar a transição para uma sociedade socialista, em que a propriedade privada daria lugar a formas coletivas de produção e gestão. “A União Soviética não estabeleceu o socialismo, mas sim uma sociedade pós-capitalista, que dissolveu os proprietários privados, mas sem uma gestão efetivamente coletiva e social dos meios de produção”, afirma Livia Cotrim, professora do Centro Universitário Fundação Santo André (FSA).
Após a revolução, o então Partido Comunista se viu rodeado de inimigos, que iniciaram uma guerra civil no território russo. Somente em 1922 os comunistas conquistaram a vitória, reunindo os territórios na União das Repúblicas Soviéticas (URSS). Com a morte de Lenin, em 1924, o poder soviético seria transferido para Josef Stalin, secretário-geral do Partido Comunista, que iniciaria a industrialização acelerada e a coletivização forçada das terras camponesas, causando fome, repressão e morte em massa.
OPERÁRIOS EM GUERRA
Após invasão nazista, opositores de Stalin e críticos ao regime pegaram em armas na defesa da URSS
Depois da consolidação de Stalin no poder, a oposição foi silenciada e um Estado autoritário foi moldado, ao mesmo tempo que ocorriam melhorias nas condições de vida por conta do desenvolvimento econômico. “Os bolcheviques cometeram erros, mas o stalinismo representou uma mudança radical no caráter do Estado soviético, que assumiu, com a degeneração burocrática e o extermínio dos revolucionários de outubro, um caráter totalitário”, afirma Michael Löwy, diretor de pesquisas no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), na França, que esteve no Brasil para participar de um evento sobre a Revolução Russa organizado pela Editora Boitempo e pelo Sesc Pinheiros.
Mesmo com esse cenário, a ameaça nazifascista uniu trabalhadores e militantes de oposição a Stalin em um episódio batizado pelos russos de Grande Guerra Patriótica. Após a invasão das tropas de Adolf Hitler ao território soviético, em junho de 1941, a derrota parecia iminente: ao final daquele ano, os nazistas encontravam--se às portas de Moscou. Filho de camponeses, o comandante Gueorgui Jukov liderou a defesa da nação, que iniciaria um contra-ataque depois da batalha na cidade de Stalingrado, em 1943.
Com quase 25 milhões de mortos, a União Soviética foi o país que mais sofreu perdas humanas durante o conflito global. Na mobilização popular, as mulheres tiveram papel de destaque no Exército Vermelho: Lyudmila Pavlichenko foi condecorada como uma das melhores atiradoras de elite da história militar. O 46º Regimento de Bombardeio Noturno Taman, por sua vez, era formado apenas por aviadoras especialistas em combate aéreo e destruição de alvos nazistas.
Ao final do conflito, a União Soviética emergia como uma potência mundial, ao lado dos Estados Unidos. A poeira nuclear de Hiroshima e Nagasaki ainda não tinha baixado e o mundo já presenciava um novo conflito político e ideológico.
+ Confira também: Fotos da Rússia antiga são coloridas digitalmente — e ficam incríveis
TRIUNFO DA DESTRUIÇÃO
Número de mortos na Segunda Guerra Mundial
IDEOLOGIA EM CARTAZ
Nos últimos anos de vida de S
talin, arte e cultura foram mais reprimidas
Com o final da Segunda Guerra Mundial, o político soviético Andrei Zhdanov lançou as bases de uma doutrina para combater a propaganda norte-americana e anticomunista. “Colocava-se a arte e a cultura inteiramente a serviço do Estado, totalmente imbuídas da ideologia socialista — não havia mais ambiente para qualquer crítica”, afirma Moisés Franciscon, pesquisador da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Nos cartazes políticos dirigidos aos trabalhadores, os Estados Unidos eram apresentados como os inimigos da vez.
CORRIDA MALUCA
A divisão do planeta entre áreas de influência da União Soviética e dos Estados Unidos moldou a segunda metade do século 20
Não era necessário ser um grande analista político para saber que a convivência entre soviéticos e norte-americanos não daria muito certo: enquanto os Estados Unidos iniciavam uma etapa de desenvolvimento acelerado do capitalismo no pós-guerra, o Partido Comunista da União Soviética apoiava revoluções de inspiração socialista nas nações do Leste Europeu.
A divisão do mundo como um jogo de tabuleiro tornou-se uma plataforma política. Secretário de Estado norte-americano no princípio da década de 1950, John Foster Dulles formulou a “teoria do dominó”, afirmando que, caso um país vivesse uma revolução socialista, era provável que nações vizinhas também passariam por esse processo. Detentores dos maiores arsenais nucleares do planeta, a União Soviética e os Estados Unidos recorreram a ditaduras, massacres e intervenções militares para manter sua influência no mundo.
Em algumas ocasiões, no entanto, a política real falava mais alto. Um dirigente do Khmer Vermelho, movimento de inspiração comunista que governou o Camboja de 1975 a 1979, afirmou em depoimento prestado à Justiça que os Estados Unidos ajudaram o grupo. O motivo para isso é que o regime, responsável pela morte de quase 2 milhões de pessoas, era inimigo do governo do Vietnã, um aliado da União Soviética na Ásia.
+ Leia: "Stalin era astuto, mas cego pelas amarras ideológicas"
MAIORES DESTRUIDORES
Número de armas nucleares por país
CRIMES COM IDEOLOGIA?
A Guerra Fria foi o palco de massacres e repressão política
Guerra da Coreia
Durante a guerra civil, que durou de 1950 a 1953, milhares de pessoas suspeitas de serem simpatizantes dos movimentos comunistas foram presas e assassinadas durante o governo de Syngman Rhee, presidente da Coreia do Sul, que era apoiado pelos Estados Unidos.
Revolução húngara
Uma manifestação de estudantes contra o governo comunista da Hungria motivou um movimento popular, reprimido pelo exército soviético em 1956. Milhares de húngaros foram obrigados a fugir do país.
O golpe de Pinochet
O presidente chileno Salvador Allende, eleito em 1970, foi alvo de uma campanha de sabotagem patrocinada pelo governo norte-americano. Em 1973, um golpe militar colocou o general Augusto Pinochet no poder.
Guerra do Afeganistão
Em 1979, tropas soviéticas invadiram o Afeganistão a pedido do governo do país, que combatia rebeldes. Mais de 1 milhão de pessoas morreram durante o conflito, que durou até 1989.
DA AK-47 À INTERNET
Com investimentos em educação e o desenvolvimento da indústria, União Soviética produziu inovações na ciência e na tecnologia
Apesar de não contar com os mesmos recursos econômicos das nações da Europa Ocidental, a ciência russa gozava de prestígio desde o período imperial: o químico Dmitri Mendeleiev, “pai” da tabela periódica, e Ivan Pavlov, vencedor do Prêmio Nobel de Medicina de 1904, eram alguns dos nomes que produziam ciência de ponta no país. Depois da Revolução Russa, o governo investiu em melhorias educacionais de maior urgência.
“De início, a prioridade soviética foi a diminuição do analfabetismo, e, aos poucos, o ensino secundário foi estendido, com um grande número de escolas técnicas”, relata o professor Gildo Magalhães, da Universidade de São Paulo (USP).
Durante a liderança de Josef Stalin, mesmo com o aumento da repressão política, cientistas se posicionaram a favor da livre investigação e do direito à crítica. O geoquímico Vladimir Vernadsky insistia para que a União Soviética desenvolvesse um pensamento filosófico genuíno e questionador, em vez de apenas seguir a doutrina oficial que propagava as ideias marxistas-leninistas, com pouco espaço para novas investigações. Mas isso não significava que os pesquisadores estavam imunes à perseguição.
“A repressão brutal desencadeada por Stalin na década de 1930 solapou muitos ganhos que haviam sido obtidos”, destaca Magalhães, “já que um número expressivo de cientistas e técnicos foi enviado para trabalhos forçados ou exterminados simplesmente por serem delatados como contrarrevolucionários.”
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, soviéticos e norte-americanos se beneficiaram das pesquisas feitas por cientistas alemães: o desenvolvimento dos foguetes e da indústria espacial soviética (leia quadro ao lado) contou com os estudos prévios realizados na Alemanha.
Apesar da priorização do desenvolvimento da indústria bélica, com a criação do fuzil de assalto AK-47 pelo engenheiro militar Mikhail Kalashnikov e o desenvolvimento dos mísseis nucleares, a ciência soviética também avançou em outras fronteiras do conhecimento. Antes da crise que culminaria na desintegração da nação, pesquisadores realizaram trabalhos sobre física de semicondutores, partículas subatômicas e fabricação de raios laser. Durante a década de 1970, o matemático Victor Mikhailovich Glushkov iniciou um projeto que seria o embrião da internet, mas que não foi levado adiante pela liderança soviética.
+ Leia também: Martelo e foicebook: União Soviética queria construir a própria internet
CAMARADAS DAS GALÁXIAS
Os principais feitos do programa espacial soviético
R-7 Semyorka
Primeiro míssil capaz de percorrer distâncias intercontinentais, foi lançado em 1957. Mais do que um equipamento militar, o R-7 se tornou o foguete pioneiro para os projetos espaciais da União Soviética
Sputnik
Em outubro de 1957, foi lançado o primeiro satélite artificial ao espaço. O Sputnik emitia apenas um som de “bip”.
Laika
A cachorra vira-lata se tornou o primeiro ser vivo da Terra a visitar o espaço, em novembro de 1957. No entanto, ela morreu poucas horas após o lançamento do Sputnik 2.
Iuri Gagarin
Em 12 de abril de 1961, o cosmonauta Iuri Gagarin foi o primeiro humano a viajar para fora da Terra.
MIR
A estação espacial pioneira iniciou sua operação em 1986 e foi utilizada até 2001 pela Rússia.
TRABALHADORAS EM LUTA
Após conquistas do período revolucionário, mulheres russas vivem retrocessos
No dia 8 de março de 1917, uma manifestação que reunia mulheres operárias foi um dos principais estopins para o início da derrubada do czar. Durante o período revolucionário, militantes como Alexandra Kollontai e Nadezhda Krupskaya tiveram papel de liderança no Partido Comunista. “Pela primeira vez na história da humanidade as mulheres tiveram seus direitos igualados aos dos homens, além de acesso livre ao divórcio e o direito ao aborto”, conta a professora Maria Lygia Quartin de Moraes.
Apesar de não ocuparem os mais altos cargos de liderança da União Soviética, as mulheres tinham maior participação na política naquela época do que na Rússia de hoje: enquanto em 1989 um terço do Congresso era representado por mulheres, hoje as eleitas representam apenas 12% do total de deputados. Os retrocessos não são apenas políticos: em janeiro deste ano, um projeto de lei que despenaliza as violências domésticas em nome da “tradição familiar” foi sancionado pelo presidente Vladimir Putin.
LUZ, CÂMERA, REVOLUÇÃO
Apesar da censura, cinema soviético produziu filmes com visões críticas do país
Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1981, Moscou Não Acredita em Lágrimas conta a história de meninas pobres do interior da União Soviética que migravam para a capital em busca de melhores condições de vida. O enredo crítico aos problemas sociais soviéticos não era uma excessão entre a produção cinematográfica do país.
“O cinema soviético é um bom instrumento para verificar que a realidade socialista não era nem infernal nem paradisíaca”, ressalta o historiador Moisés Franciscon. Depois dos anos mais duros de repressão do governo de Stalin, houve relativa liberdade de criação no país. “A sociedade, formada por camponeses que emigravam para as cidades com a industrialização acelerada, se urbanizava e passava mais tempo em escolas e universidades”, diz Franciscon. Comédias sociais e superproduções inspiradas na Segunda Guerra Mundial faziam sucesso nas bilheterias, mas também havia espaço para produções de maior experimentação artística.
SOVIETES EM PEDAÇOS
Tentativas de reformas para superar a estagnação econômica implodiram o estado soviético
Quando Mikhail Gorbachev chegou à liderança do Partido Comunista da União Soviética, em 1985, poucos analistas esperavam que o mundo socialista encontraria seu fim em um período curto de tempo. Mas se o Estado soviético mostrava força militar e política, também passava por um período de estagnação econômica que ameaçava as perspectivas de construir uma sociedade desenvolvida. Com as políticas batizadas de glasnost (transparência, em russo) e perestroika (reconstrução), Gorbachev buscava a solução para agilizar processos econômicos e serviços sociais.
“No início da revolução, o Estado geriu a produção e distribuição, em uma perspectiva imediata de eliminar a miséria”, afirma a professora Livia Cotrim. “Mas isso partia de um processo coercitivo: o Estado cresceu em termos administrativos e repressivos.” Com a eliminação da propriedade privada e sem uma administração efetivamente coletiva das empresas, o estímulo à concorrência e à inovação foi abandonado.
Não por acaso, a União Soviética passou a comer poeira os países capitalistas quando ocorreu o desenvolvimento de novas maneiras de criar produtos e serviços, com o crescimento acelerado da tecnologia durante a década de 1980 no Japão e nos Estados Unidos. A instabilidade econômica foi o estopim para protestos por liberdade política e pelo fim da influência soviética nos países do Leste Europeu. Era o fim da União Soviética.
DIFERENTE, MAS IGUAL
Após restauração capitalista, a Rússia de Vladimir Putin mantém características autoritárias
Os anos que se seguiram após o fim da União Soviética foram de instabilidade social e econômica, com desemprego, aumento da corrupção política e crescimento de mercados ilegais, como a consolidação de máfias. Desde que assumiu o cargo de primeiro-ministro, em 1999, o atual presidente, Vladimir Putin, liderou um período de relativa estabilidade e desenvolvimento econômico, explorando as estratégicas reservas de gás natural que abastecem a Europa Ocidental. Putin se manteve como liderança russa durante todo o período — sua longevidade à frente do poder só é superada pelo governos de Josef Stalin. Apesar de contar com aprovação popular superior a 80%, o governo de Putin é marcado por casos de perseguição a opositores políticos e retrocesso em garantias de direitos humanos, principalmente em relação às pessoas LGBT. O presidente russo afirmou que não realizará comemorações oficiais em memória do centenário da Revolução Russa.
COMUNISMO À BRASILEIRA?
Os maiores partidos de esquerda brasileiros se distanciam da teoria revolucionária soviética
Se no senso comum — ou nos comentários de portais de internet — há a associação entre os ideais do comunismo soviético e o projeto político do Partido dos Trabalhadores (PT), isso está bem distante da teoria e da prática. “Em sua fundação, no começo dos anos 1980, o PT inscrevia-se na perspectiva de construção de alternativas tanto no ‘capitalismo regulado’ quanto no padrão do ‘socialismo soviético’”, afirma o professor Daniel Aarão Reis.
Embora existam tendências internas petistas ligadas às formulações de Vladimir Lenin e de Liev Trotsky, o conjunto do partido procura manter uma distinção clara entre sua concepção de socialismo e as experiências que aconteceram durante o século 20. No início da década de 1990, o congresso partidário formulou que, em seus princípios, o PT rejeitava a política da “ditadura do proletariado” e a prática revolucionária para a chegada ao poder, dando lugar à ideia de construção de um socialismo democrático.
Nenhum comentário: