HIV: apesar de avanços da medicina, preconceito é o mesmo dos anos 80
As unhas roídas denunciavam meu estado de espírito na sala de espera do posto de saúde, enquanto aguardava o resultado do teste rápido de HIV. A duas cadeiras de mim, compartilhava da mesma angústia um rapaz de olhos esbugalhados que exalava álcool e, ao lado, um amigo meu que nunca tinha feito o teste. Dias antes, havia descoberto que alguns conhecidos receberam o diagnóstico positivo. O vírus que antes me parecia preso aos filmes agora estava à solta nos lugares que frequento. Claro que, na verdade, ele sempre esteve lá. Foi por isso que resolvi tomar um gole de coragem e ir ao posto — embora preferisse uma cerveja.
O rapaz alcoolizado foi o primeiro a entrar na sala minúscula que, naquele instante, assumia a forma de um moedor de sonhos. Não sei qual foi o diagnóstico, mas, ao sair de lá, sua expressão me lembrou dos versos de “O Mundo É um Moinho”, de Cartola. Era a mesma cara de “em cada esquina cai um pouco a tua vida / em pouco tempo não serás mais o que és” que meu amigo fez ao descobrir ser portador do vírus, minutos depois. Nós dois choramos juntos. Fui o último a entrar no moedor. A agente de saúde disse apenas que minha amostra havia dado não reagente: eu não tinha o vírus. Nem comemorei porque achei que mesmo um sorriso seria uma ofensa ao meu amigo. E, na verdade, não existia nada que me separasse dele, exceto algum instante decisivo que nem ele nem eu sabíamos qual era.
Só depois percebi que não tinha razão para estar preocupado: eu não havia tido nenhuma relação de risco. A única coisa que pesava sobre mim era o fato de ser gay e de ter sido bombardeado a vida inteira com a ideia de que, enquanto meu irmão heterossexual deveria se preocupar em não engravidar a namorada, eu deveria me preocupar em não ser “promíscuo demais” para não ficar “doente”, como se meu irmão fosse imune a infecções. Com o tempo, isso começou a me parecer estranho. Resolvi investigar.
O último Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, de 2016, mostrou que os casos de HIV entre os jovens no Brasil aumentaram consideravelmente. Eu sabia disso, mas, até quase enfartar no posto, simplesmente não prestava atenção. Alheio a mim, o problema avançava: das 32.321 novas infecções por HIV registradas em 2015, 24,8% aconteceram com pessoas entre 15 e 24 anos. Muitos apontam como causa a facilidade de obter sexo por meio de aplicativos ou o fato de que os adolescentes não conviveram com o auge da epidemia.
Mas, para os especialistas, a questão é bem mais complexa. “Continuamos com essa visão hipócrita de que falar sobre sexo incita os mais jovens, e não damos ferramentas para que eles tomem decisões mais seguras em relação à sexualidade”, afirma Georgiana Braga-Orillard, diretora do Unaids, programa conjunto da ONU sobre HIV e aids que tem como meta acabar com a epidemia até 2030.
A primeira pessoa que me fez perceber que eu não entendia nada sobre aids foi o artista Gabriel Estrela, de 25 anos. Em um vídeo com a youtuber Jout Jout, visto quase 800 mil vezes, Gabriel explicou que aids e HIV não são sinônimos. Foi o bastante para mudar minha relação com o vírus e fazer meu amigo entender que ele não iria morrer automaticamente, nem ter as feições cadavéricas exibidas por Matthew McConaughey em Clube de Compras de Dallas.
O HIV é um vírus que ataca o sistema imunológico, fazendo com que o organismo fique suscetível a doenças oportunistas. Isso porque, quando ele acaba com as células de defesa, a imunidade baixa, levando à manifestação da aids. É como em Doutor Estranho, quando os portais que protegem a Terra são destruídos e o planeta fica vulnerável a seres de outra dimensão. A questão é que, se o HIV não se replica, ele não destrói nossos portais.
Por isso, apesar de uma cura definitiva ainda não ter sido descoberta, tratamentos como aqueles disponíveis de graça pelo SUS são bem eficientes. Quando o HIV é bloqueado, a carga viral (quantidade de vírus no sangue) baixa até ficar indetectável. Os remédios funcionam tão bem que, em maio, pesquisadores da Universidade de Bristol mostraram que jovens que começaram o tratamento depois de 2008, quando já se sabia como manter a carga viral zerada de forma eficaz e duradoura, têm uma expectativa de vida de 78 anos — praticamente igual à de quem não tem o vírus.
No canal do YouTube Projeto Boa Sorte, Gabriel traz informações como essa e reflexões sobre a vida com HIV. Além de tomar até três comprimidos por dia (e dos possíveis efeitos colaterais no fígado e nos rins), quem vive com o vírus enfrenta algo mais devastador: a intolerância de uma sociedade cuja mentalidade em relação à aids ainda não evoluiu. Por isso, chamei Gabriel para me ajudar a encontrar outras pessoas que também lidam diretamente com a questão. Você vai conhecê-las ao longo da reportagem.
Vivendo e aprendendo
Além do anúncio de que testes de farmácia para HIV estarão à venda a partir de agosto, a notícia que mais animou ativistas e especialistas neste ano foi a de que, a partir de dezembro, o SUS vai disponibilizar mais uma opção de proteção: a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), que consiste no uso diário do antirretroviral Truvada por pessoas que não têm o vírus. Se a Profilaxia Pós-Exposição (PEP) funciona como uma pílula do dia seguinte (que deve ser tomada durante 28 dias por pessoas que tiveram relações de risco), a PrEP está mais para um anticoncepcional. Porém, antes mesmo de chegar, ela já causa polêmica. Há quem pense que a camisinha vai ser deixada de lado, elevando o índice de infecções como a sífilis, que cresceu 5.000% entre 2010 e 2015, de acordo com o Ministério da Saúde.
O infectologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP Ricardo Vasconcelos, coordenador do Projeto PrEP Brasil, afirma que essa possibilidade foi levada em consideração. “Quando você dá a PrEP para quem já transa sem camisinha, o risco de aumentar outras infecções é baixo, principalmente se você vincular a pessoa ao serviço de saúde.” É por isso que, no primeiro ano, os 7 mil kits do medicamento só serão liberados para quem já mantém relações de risco. “Assim, mesmo se a pessoa não usar preservativo, ela está se testando para outras doenças, diagnosticando e tratando, o que bloqueia a transmissão”, explica o médico, reforçando que a estratégia deve ser combinada com outras medidas. A ideia é que, até 2022, cerca de 30 mil brasileiros tenham acesso à PrEP.
Notícias de outra vida
Nos últimos dois anos, foram veiculadas na imprensa várias reportagens alarmistas sobre pessoas que infectam parceiros de modo intencional. As matérias falavam sobre como “grupos transmitiam aids de propósito”, e expunham o que chamavam de “o dilema de soropositivos diante da dificuldade de apuração nos casos”. Em vez de informar, no entanto, muitas delas apenas reforçaram a ideia de que quem vive com o vírus é como um bandido, numa “estranha guerra surrealista na qual o guerreiro seria ao mesmo tempo o campo de batalha, o canhão, o inimigo e a vítima”, como escreveu o francês Alain Emmanuel Dreuilhe em Corpo a Corpo: Aids, Diário de uma Guerra (Ed. Paz e Terra).
De fato, expor outra pessoa a infecções sexualmente transmissíveis intencionalmente é crime previsto no Código Penal e pode dar até quatro anos de prisão. Mas, desde 2015, tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei 198/15, do deputado Pompeo de Mattos (PDT-RS), que quer transformar em crime hediondo a transmissão deliberada especificamente do HIV. Em junho, a discussão retornou à pauta e deixou em alerta organizações como o Unaids, que a entendem como um retrocesso.
"Em pleno 2017, estamos vendo um projeto elaborado em 1999 que não leva em conta os avanços contra a epidemia”, diz Georgiana Braga-Orillard. “Não há evidência de que a criminalização seja eficaz, vários países que a adotaram voltaram atrás.” A diretora destaca a possibilidade de erros judiciários e casos como os de mães que transmitem o vírus aos filhos sem saber.
Em declarações oficiais, Adele Benzaken, diretora do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, diz que a medida pode fazer com que as pessoas sintam medo de receber o diagnóstico e se afastem do tratamento. O governo estima que 112 mil brasileiros não conhecem sua sorologia positiva, e que outros 260 mil conhecem, mas não estão em tratamento, aumentando o risco de infecções.
Projetos de lei como esse intensificam o conceito de “pânico moral”. “Trata-se desse medo exacerbado acerca do HIV que é a fonte de toda discriminação”, explica o psicólogo Salvador Correa, coordenador executivo adjunto da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia). “Nós fomos criados dentro dessa lógica de ver o HIV como algo destruidor, o que até foi uma realidade durante um tempo, mas não conseguimos avançar na desconstrução desse medo.” Esse tipo de ignorância torna a vida de quem vive com o vírus muito mais marginalizada, levando ao desenvolvimento de transtornos mentais sérios como a depressão.
Antes de começar sua fala no TEDx Brasília, Gabriel Estrela precisou pedir desculpas por se ausentar no início das palestras. Ele explicou que teve de ajudar uma amiga que vive com HIV e havia tentado o suicídio horas antes de ele subir ao palco. “Queria que vocês entendessem que essa pessoa que fala abertamente e que pode fazer carreira a partir de sua sorologia é uma exceção”, disse o artista, que já produziu uma peça sobre o tema.
Muitas das matérias recentes que acusam os transmissores do vírus usam o mesmo tom alarmista que se via nas primeiras notícias sobre o assunto, na década de 1980. As reportagens que tratavam do “sombrio universo dos portadores do vírus da aids” ajudaram a definir a forma como muita gente percebe o HIV até hoje. Com uma curiosidade mórbida, o público acompanhava (e continua acompanhando) histórias de personagens que se escondiam nas sombras — literalmente, já que grande parte deles aparecia na contra-luz para ter a identidade preservada.
Apesar disso, a aids ganhou um retrato famoso e polêmico no Brasil quando, em 1989, Cazuza estampou a capa da revista Veja com a chamada “Uma vítima da aids agoniza em praça pública”. “Apesar da campanha antiaids do Ministério da Saúde, de 1988, afirmar que ‘quem vê cara não vê aids’, a ‘cara da aids’ [o estereótipo] passou a ser mais valorizada do que nunca”, escreveu Marcelo Secron Bessa em Os Perigosos: Autobiografias & Aids (Ed. Aeroplano).
Viva a vida
“Comprimi meus lábios na mão de Musil para beijá--la. Ao voltar para casa, ensaboei-os com vergonha e alívio, como se estivessem contaminados.” Esse trecho de Para o Amigo que Não me Salvou a Vida, do escritor francês Hervé Guibert, ilustra o desconhecimento acerca do fator contagioso do vírus. E mostra como nem um dos mais influentes pensadores do século 20 estava livre da ignorância que o cercava: Musil é o pseudônimo do filósofo Michel Foucault, morto em decorrência da aids em 1984.
Mas a falta de informação não ficou no passado. “Ainda hoje, tenho pacientes que recebem o diagnóstico com aquela cara de sofrimento da década de 1980”, relata Ricardo Vasconcelos. O médico lembra o caso de um rapaz que, ao receber o resultado positivo, pediu demissão do trabalho, terminou com o namorado e foi para a consulta. “Eu falei: ‘Então, você liga já para o chefe e para o namorado e avisa que vocês precisam conversar’. É como se fôssemos transportados para uma época em que não havia tratamento.”
Embarquei na mesma máquina do tempo quando meu amigo recebeu o diagnóstico e quase ameaçou as enfermeiras de morte para ser internado — e foi tão eficiente que conseguiu, mesmo sem necessidade. A ideia de se tornar um “aidético” quase o fazia andar curvado por conta do peso do termo (o correto é “doente de aids” ou “pessoa vivendo com HIV”, quando não há manifestação da doença). Depois, percebi que ele havia sido infectado pelo “vírus da linguagem”, um conceito do escritor William S. Burroughs. A metáfora é especialmente interessante quando aplicada à aids e ao HIV, porque as outras palavras relacionadas a essas duas contribuem (e muito) para a forma de percepção da doença.
Meu corpo daria um romance
Ao se referir a sua sorologia, o poeta Ramon Nunes Mello, 33 anos, afirma “estar HIV positivo” e não “ser HIV positivo”. “Acho que a linguagem é o verdadeiro vírus capaz de modificar o imaginário em relação ao HIV”. Para o autor, que está organizando uma antologia de poemas sobre o tema, a escolha entre os verbos “ser” e “estar” define uma posição política: “Acredito que ninguém é a própria doença”.
No ensaio Aids e suas Metáforas (Companhia de Bolso), a escritora Susan Sontag também reflete sobre a síndrome que dominava as manchetes em 1988. “Em anos recentes, o câncer perdeu parte de seu estigma devido ao surgimento de uma doença cuja capacidade de estigmatizar, de gerar identidades deterioradas, é muito maior. Toda sociedade, ao que parece, precisa identificar uma determinada doença com o próprio mal, uma doença que torne culpadas as suas ‘vítimas’: porém é difícil obcecar-se por mais de uma.”
A escritora, que sobreviveu a um câncer, alerta para o uso das metáforas militares do vírus “invasor” que “contamina” pessoas e precisa ser “derrotado”, causador de uma epidemia “contra” a qual precisamos “lutar”. Na era de filmes como Alien e Star Wars, referir-se desse modo a um corpo desconhecido que chega para “destruir” os seres humanos pode até parecer relativamente apropriado. Mas, para Sontag, esse tipo de figura de linguagem faz com que a própria vítima seja vista como culpada — é o lado sombrio da Força em sua melhor forma.
Segundo Nunes Mello, com o avanço da medicina será possível “buscar novas metáforas e palavras para construir um novo imaginário em torno do HIV”. É por isso que, para distinguir o tipo de estigma sofrido por pessoas que vivem com o vírus, ativistas como o médico sanitarista Carué Contreiras, 38, preferem usar o termo “sorofobia” — que, apesar de ser comum em países como a Espanha, ainda não é muito popular no Brasil. “A exemplo da homofobia e da transfobia, a gente só conhece os preconceitos quando eles passam a ser denominados”, justifica Contreiras.
Abacaxis americanos
“O jeito como a epidemia entrou nos EUA foi determinante”, destaca o médico Ricardo Vasconcelos. Como os primeiros casos foram reportados em homens homossexuais, não demorou para que esse grupo fosse marcado. O apelido “peste gay”, portanto, não surgiu por acaso. Em uma crônica do jornal O Estado de S. Paulo, de 1987, o escritor Caio Fernando Abreu comentou sobre a primeira vez que ouviu falar do problema: “‘Não é possível’, pensei, ‘uma espécie de vírus de direita, e moralista, que só ataca os homossexuais?’”. Não demorou para que a ideia de “grupo de risco” se espalhasse. Hoje, já se sabe que ninguém detém o monopólio da transmissão. “Nós consideramos que todas as pessoas têm vulnerabilidade ao HIV”, afirma Vasconcelos.
Foi exatamente essa crença no tal grupo de risco que fez meu cérebro parecer gelatina no posto de saúde — afinal, a infecção tem a ver com a forma como eu me relaciono, não com o grupo ao qual eu pertenço. Por isso, o termo usado para definir a parte da população em que a epidemia se concentra mais e que de fato é determinante para ajudar a conter seu avanço é “população-chave”. Ela é composta por homens que fazem sexo com homens (não, nem todos se definem como gays), travestis, mulheres trans, pessoas que injetam drogas e profissionais do sexo. Por serem o grupo mais estigmatizado, a vulnerabilidade acaba sendo maior nesses casos.
O Ministério da Saúde estima que na população geral a prevalência do HIV é de 0,4%. Enquanto isso, algumas pesquisas apontam prevalências de até 15% entre gays e outros homens que fazem sexo com homens, e mais de 30% em mulheres trans.
São porcentagens altas demais para serem ignoradas. Ainda assim existe um tabu em relação ao tema dentro da própria comunidade LGBT+ (que inclui minorias como intersexuais e assexuais). Por terem sido associados à ideia oitentista de “grupo de risco” durante anos, há quem prefira guardar o assunto no baú de coisas vergonhosas, junto dos mullets e dos blazers com ombreiras.
“Moralmente falando, qual é o problema de ter um grupo com prevalência alta do vírus? Isso é uma vulnerabilidade, não diz nada contra essas pessoas”, ressalta Contreiras. “Cabe à comunidade LGBT aceitar essa tese de que o HIV é algo vergonhoso ou recusar isso e cuidar dos seus interesses de saúde.” Para o médico, o resultado dessa negação é bem prático: isolamento e opressão. “Além disso, faz com que toda a comunidade se torne vulnerável.”
A epidemia avança
Nos últimos 20 anos, Brunna Valin teve de aprender a lidar com dois tipos de estigma. “O preconceito em relação ao HIV foi muito pequeno se comparado ao que passei por ser transexual. Durante muito tempo fui tratada como coisa, mas sou parte da sociedade também”, diz a orientadora socioeducativa do Centro de Referência e Defesa da Diversidade e articuladora da Rede TransBrasil, dando uma forte pista do motivo pelo qual a incidência é tão considerável entre as mulheres trans.
Os preconceitos que já existem não desaparecem quando alguém recebe o diagnóstico positivo: eles se acumulam. Logo, não surpreende o fato de que, comparados com os brancos, os negros apresentam indicadores piores em relação ao HIV. A desigualdade de gênero também aparece neste caso, já que as mulheres negras são as que mais morrem por falta de tratamento, segundo levantamento do Sistema Público de Saúde da Prefeitura de São Paulo. Em 2015, a cada 100 mil habitantes, uma média de 21,4 mulheres negras foram diagnosticadas com HIV — esse número cai para 7,3 no caso das brancas.
Por essa razão, a artista plástica Micaela Cyrino, 29, integrante do Coletivo Amem, questiona a evolução no tratamento. “Acho que quem é preto, pobre e periférico ainda está muito longe de alcançar esse lugar fantástico de quase resolução da epidemia. Entre as mulheres negras da periferia o acesso é praticamente nulo”, diz ela, que teve o vírus transmitido pela mãe ao nascer. A forma como pessoas trans ou negras (ou trans e negras) são tratadas nos postos de saúde — ou a dificuldade de acesso que elas têm — não é diferente em outros espaços da sociedade.
Não é à toa que, para Ricardo Vasconcelos, todos os preconceitos se relacionam: “Homofobia, transfobia, machismo, racismo e desigualdade social são coisas que também transmitem HIV, não é só o sexo sem camisinha”.
Vida antes da morte
“As pessoas continuam desinformadas. Tenho que explicar todas as evoluções na medicina. É uma chatice, a ignorância leva ao medo”, desabafa Cati na graphic novel Pílulas Azuis (Ed. Nemo), do suíço Frederik Peeters. Mais do que uma história real de amor entre o autor e sua esposa, a obra é um holofote direcionado ao tema dos relacionamentos sorodiferentes — quando uma pessoa do casal tem HIV e a outra não.
A maneira delicada com que Peeters narra suas descobertas me convenceu a gentilmente obrigar o meu amigo a ler o livro. Assim como Cati, ele achava que sua vida sexual estava “fadada à mediocridade” porque se tornaria “sujo” e “perigoso”. Ele estava errado. Desde 2008, pesquisas demonstram que pessoas que têm o vírus indetectável e que fazem o tratamento de modo correto não transmitem HIV — pode reler a frase e tirar um tempinho para refletir, a gente espera.
Dois dos estudos norte-americanos mais importantes sobre o assunto, o HPTN 052 e o Partner constataram que não houve nenhuma transmissão entre os parceiros analisados que tomavam os antirretrovirais e zeravam a carga viral. Mais do que a oportunidade de fazer sexo sem camisinha (desde que combinando outros tipos de proteção), as pesquisas mostram que o próprio tratamento também é uma forma de se prevenir, pois bloqueia a possibilidade de novas infecções. É por isso que, no vídeo em que fala sobre o tratamento como prevenção (“TasP”, na sigla em inglês), Gabriel Estrela diz sem medo: “Fazer sexo com alguém que vive com HIV e faz o tratamento direitinho é mais seguro do que com alguém que não sabe sua sorologia”.
Silvia Almeida sabe bem disso. Em 1993, depois que seu marido morreu em decorrência da aids, ela descobriu que também tinha o vírus. “Minha maior dificuldade foi entender que meu marido não era um vilão, mas outra vítima da aids. Depois precisei descobrir como iria continuar minha vida e cuidar dos meus filhos”, revela a consultora de prevenção em HIV, hoje com 53 anos.
O filho de um ano não havia sido infectado — na época, a pesquisa norte-americana ACTG 076 mostrou que 25% das mães que viviam com o vírus e não faziam tratamento durante a gestação transmitiram HIV para o bebê, e o índice diminuía para 8,3% em relação àquelas que usavam o medicamento AZT. “Já tenho dois netos. Para quem pensou que não fosse ver os filhos crescendo, acho que estou no lucro”, diverte-se a consultora.
Hoje, mães ou pais que vivem com o vírus podem ter filhos de forma natural, com possibilidade nula de transmissão. Neste ano, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos publicou um documento mostrando que, se antes casais heterossexuais e sorodiferentes que queriam ter filhos precisavam apelar para reprodução assistida e lavagem de esperma, hoje basta fazer sexo sem camisinha se a carga viral estiver indetectável.
A síndrome de nossos dias
Para Ozzy Cerqueira, 30, a revelação pública de sua sorologia é como o palavrão que procede à vitória: “Já me silenciei por coisas como a minha sexualidade, e não foi bom”, diz o advogado, que recebeu o diagnóstico na época da faculdade, quando estava envolvido com os movimentos negro e estudantil. Para ele, a descoberta foi encarada como um chamado para a militância, e expor sua condição sorológica virou uma necessidade urgente. “O silêncio é uma forma de falar, ele é eloquente, ele diz muitas coisas, ele consente.”
Segundo Michel Foucault, nossa sociedade está fundamentada no ato da confissão. Para o filósofo francês, a prática se desligou da religião e se embrenhou pela sociedade, seja na medicina, seja na Justiça, seja nas relações familiares. Tornou-se, assim, uma forma de controle, já que depende de um interlocutor para julgar e punir ou perdoar. Qual seria, então, a necessidade de “confessar” algo como um diagnóstico positivo para HIV, uma vez que, por lei, ninguém é obrigado a revelar sua sorologia?
“Para mim a revelação foi fundamental, pois consegui afastar um pouco esse medo e dar espaço a outras coisas”, diz o psicólogo Salvador Correa, que contou sua experiência no livro O Segundo Armário: Diário de um Jovem Soropositivo (Ed. Autografia). “Mas é uma decisão muito individual; a pessoa precisa enfrentar a sociedade, que muitas vezes é cruel.” Correa cita casos de pessoas que são expulsas de casa ou perdem o emprego ao revelarem sua condição.
Observando meu amigo, não consigo dizer se o fato de ele insistir em manter a sorologia em segredo é resultado de um preconceito internalizado ou se isso realmente não faz diferença para ele. Seja como for, um ano depois do diagnóstico, percebo que ele já não vê culpa quando olha no espelho. O ponto de interrogação no reflexo me parece ter sido substituído pela imagem de alguém informado. Nada de versos de Cartola.
Se a medicina avança, a sociedade também precisa evoluir. “Sempre penso na metáfora do X-Men, de quando encontram uma cura para a mutação. Queria que encontrassem uma cura que nos tornasse iguais”, diz Ozzy Cerqueira. “Essa epidemia colocou a sociedade para refletir. Acho que a própria aids foi uma cura para o mundo, uma chance de colocar em xeque várias questões. E eu gosto de fazer parte dessa cura.”
Curte o conteúdo da GALILEU? Tem mais de onde ele veio: baixe o app da Globo Mais para ver reportagens exclusivas e ficar por dentro de todas as publicações da Editora Globo. Você também pode assinar a revista, por R$ 4,90 e baixar o app da GALILEU.
Nenhum comentário: