Mato de comer
No tranquilo bairro de City Lapa, na zona oeste da capital paulista, um grupo ruidoso se reúne todo mês, logo cedo, na frente da casa amarela da nutricionista Neide Rigo. Todos de rastelo na mão, uma tesourinha se precisar, sacola a tiracolo, a trupe de caçadores-coletores faz sucesso entre a vizinhança, que se acostumou com o burburinho nas calçadas e também participa.
São crianças, senhoras e senhores, profissionais do mercado financeiro, fotógrafos e bancários. Por três horas, eles caminham pelo bairro debaixo de sol (de preferência) e de chuva (se não tiver como evitar), Neide à frente, olhando o topo das árvores, plantas nos quintais e frestas na calçada, atrás de qualquer mato, flor, fruto ou semente.
A turma anda devagar pelos seis quilômetros do percurso porque há várias paradas – em cada uma delas Neide reúne a turma em círculo e apresenta novas espécies aos expedicionários. No final do passeio, contornam a horta comunitária que Neide e os vizinhos ergueram numa pracinha, para limpar o terreno. No final, a trupe volta à casinha amarela para almoçar serralha, caruru, limão-cravo, amendoim-de-árvore, mamão-verde, tudo colhido no caminho. A mesa fica repleta de plantas rasteiras de nome incomum, frutos que não se encontram em supermercado, raízes tortuosas e muito nutritivas. Tudo PANC: plantas alimentícias não convencionais.
Questão de ordem
A expedição urbana para caçar mato se espalhou por São Paulo – tem até um hotel em Ibiúna fazendo coisa parecida –, mas no dia a dia de biólogos, indígenas e gente da roça, por todo o País, é um modo de vida. As PANCs já dominam o mundo, só nos resta comê-las.
Neide Rigo sempre passeou pelo bairro mirando a flora local. Há décadas interessada no assunto, comprava livros para identificar os nomes das plantas e bibliografia estrangeira sobre alimentos incomuns, como os da autora suíça Meret Bisseger. Em seu blog Come-se, ela conta o que encontra pelo caminho, compondo uma espécie de diário de campo de passeios urbanos. Colhe, limpa e faz testes culinários. Foi um vídeo de 2010 que fez o termo PANC chegar aos ouvidos de Neide. “Foi quando conheci o trabalho do biólogo Valdely Kinupp. E percebi que falávamos das mesmas coisas.”
O termo “planta alimentícia não convencional (PANC)” foi cunhado por Kinupp, um fluminense de quase 2 m de altura e uma fome dos diabos. Em 2007, ele apresentou sua tese de doutorado sobre PANCs da região metropolitana de Porto Alegre. A tese fez barulho no meio acadêmico e Kinupp apresentou o trabalho em várias cidades do País.
Quando ainda estava na graduação, em 2000, Kinupp estreitou laços com o engenheiro agrônomo Harri Lorenzi, autor de livros de botânica e idealizador do Instituto Plantarum em Nova Odessa (SP), um viveiro de quase 4 mil espécies aberto à visitação. “Ele chegou aqui magrinho, com vontade de estagiar. Encontrava comida por todo o lugar. No quintal, via potencial em tudo. Tarde da noite a gente ouvia o barulho do liquidificador batendo: era ele, fazendo alguma vitamina diferente.”
O contato entre os dois pesquisadores virou colaboração intensa e, ao longo de dez anos, a dupla viajou pelo Brasil para identificar plantas com potencial culinário. O resultado foi publicado em 2014: Plantas Alimentícias Não Convencionais no Brasil. O livro virou a Bíblia do movimento, com a identificação, tabela nutricional e receitas de 351 espécies de planta até ontem consideradas daninhas.
Qualquer mato que a gente despreza é uma PANC em potencial, se não for tóxica. Como categoria de estudo, é um termo novo e bem elástico: inclui hortaliças, frutas e castanhas, geralmente selvagens, disseminadas sem a ajuda do homem, cujo potencial alimentar ainda segue inexplorado.
Antes da criação da agricultura, todas as espécies eram selvagens. O trigo que a gente usa, por exemplo, não existe na natureza. É fruto de milênios de seleção genética artificial, buscando variedades mais resistentes, palatáveis e “gordas”. Virtualmente, todos os vegetais que plantamos para comer passaram por esse processo. Outros não. São “selvagens”. Não passaram pela seleção genética de 12 mil anos de agricultura. Mas nem por isso não são comestíveis. É o caso das PANCs.
De qualquer forma, a classificação de um vegetal como PANC varia de cultura para cultura. Plantas silvestres de uso regional são PANCs em outros lugares do planeta – ou até na cidade vizinha. O que é hortaliça convencional em São Paulo pode não ser no Ceará ou em Portugal, e vice-versa. A ora-pro-nóbis (Pereskea aculeata), que cresce espontaneamente em pastagens do Sul ao Nordeste, chega à mesa dos mineiros como se fosse couve. Urtiga-brava, aquela que pinica e aparece sem ser convidada entre a grama, vira sopa e cobertura de pizza na Itália e na Escandinávia.
Segundo Kinupp, a sigla também abarca “partes alimentícias não convencionais”: porções descartadas da planta. “Pouca gente usa o coração da bananeira para cozinhar. É uma pena porque, em conserva, ele é similar à alcachofra. Há ainda o palmito que cresce em seu pseudocaule. Cozido com água e sal e refogado com temperos, vira recheio de tortas e pastéis.”
A dificuldade em olhar para uma espécie verde e levá-la para a cozinha, segundo Kinupp, é a desinformação. “Muitos desses ingredientes são vistos como comida de pobre. É difícil convencer as pessoas a introduzir PANCs na dieta. A maioria acha que urtiga só dá coceira, que picão é mato, que bucha verde é apenas esponja para lavar louça.” Enquanto isso, o agricultor continua plantando alface e, lá no meio dos pés, crescem centenas de pés de amaranto, um grão extremamente nutritivo (e caro) que acaba não aproveitado.
Ao longo do tempo, o potencial de transformação é grande: a agricultura familiar ou a agroindústria podem resgatar uma PANC do anonimato e inseri-la no mercado. De qualquer forma, a torrente que joga centenas de espécies comestíveis no esquecimento é cada vez mais intensa, já que monoculturas, como as de soja, são mais rentáveis.
Elas estão descontroladas
A maioria das PANCs cresce indisciplinada, é rústica e resiliente. Em qualquer terreno baldio, sacada de apartamento ou beira de estrada, desde que não haja esgoto ou água parada e poluída, é possível fazer a coleta, a higienização e o manejo das PANCs. Em solos mais férteis, a diversidade de hortaliças é abundante. Frutas e castanhas são mais comuns em ambientes preservados (caatinga, Amazônia, Mata Atlântica), porque em áreas urbanas as árvores são podadas ou arrancadas antes de florescerem e frutificarem, pois danificam a cobertura de asfalto e cimento.
Nos passeios de Neide Rigo (os “Panc na City”), seguidores de seu blog pagam R$ 150 para conhecer, identificar e comer PANCs. Na horta comunitária perto de sua casa, Neide exibe um showroom de plantas úteis. A pracinha virou point de trabalhadores que passam para sentir o perfume de flor e de manjericão, ou de diaristas que, a caminho da estação de trem, colhem vagens, capim-santo e batata-doce para levar para casa. Fora do Brasil, o que Neide Rigo faz tem nome. Foraging, a expedição botânica para uso culinário,
é uma onda forte na gastronomia.
Boa parte dos chefs à frente dos melhores restaurantes do mundo afirma sair à caça de espécies selvagens em quintais, bosques e florestas, ou contrata alguém para fazer o serviço. O chef Alex Atala, famoso por servir animais não convencionais, como formigas amazônicas, também serve PANCs, como a beldroega, no aclamado D.O.M. Helena Rizzo, do vanguardista Maní, foi uma das primeiras chefs a servir e manter no cardápio o lírio-do-brejo (Hedychium coronarium), servido num mil-folhas delicado.
O movimento ganhou força na Inglaterra com o trabalho de Miles Irving, autor do livro The Forager Handbook (“O Manual do Coletor”, em tradução livre) e dono da Forager, que fornece plantas silvestres comestíveis aos melhores restaurantes do país.
Em 1995, o chef inglês Hugh Fearnley-Whittinstall foi alçado à fama com o programa televisivo Cooking on The Wild Side, em que misturava coleta de PANCs e receitas. Com seu jeitão descolado, ele deu cara e voz à coleta de alimentos urbana e, com o perdão do trocadilho, espalhou a semente na mídia.
Em agosto de 2016, as PANCs debutaram em rede nacional, numa prova de cozinheiros do Masterchef Brasil. Era a síntese do que já borbulhava na imprensa especializada e nas redes sociais.
Esse olhar encantado com o mundo natural é o resgate de um conhecimento cultural que se perdeu com o tempo. “Quando ouço falar de gente passando fome, penso nas PANCs e na falta de informação”, diz Harri Lorenzi. Num cenário em que a população brasileira consome cada vez mais alimentos prontos, ultraprocessados, as PANCs podem resgatar a relação das pessoas com o que elas comem – e trazer os nutrientes de volta à mesa.
Isto é PANC
Uva-japonesa
Hovenia dulcis
Sua árvore é invasiva, porque as sementes são facilmente espalhadas por pássaros e crescem muito rápido. Seus frutos são doces quando maduros, com sabor que lembra uva-passa. Atribui-se à uva-japonesa o poder de reduzir drasticamente a embriaguez e os efeitos da ressaca.
Taioba
Xanthosoma taioba
Precisa ser cozida. Crua, ela é tóxica. Alguns sinais distinguem as variedades comestíveis: folhas e caules verdes; formato de coração e caule ligado à fenda; linha discreta contornando a folha.
Pixirica
Leandra australis
É uma das poucas frutas azuis, o que, em outras plantas, pode indicar toxicidade. A pixirica, porém, é segura. Comum em beiras de matas úmidas, tem gosto suave e doce.
Ora-pro-nóbis
Pereskia aculeata
É comum na culinária mineira e seu nome significa “rogai por nós”, em latim. Seus frutos amarelos são nutritivos, mas a parte mais consumida são as folhas, que podem ser refogadas como couve.
Lírio-amarelo
Hemerocallis flava
Não confunda com lírio de floricultura, que é tóxico. As pétalas têm gosto de alho, as folhas servem de condimento e os tubérculos, cozidos, lembram milho verde.
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Trapoeraba-roxa
Tradescantia zebrina
As folhas são usadas no México em infusões coloridas. De reprodução fácil, praticamente qualquer fragmento do caule consegue se regenerar e transformar-se em uma nova planta.
Dente-de-leão
Taraxacum officinale
É altamente consumido na Europa. Suas folhas amargas, serrilhadas como os dentes de um leão, lembram a catalonha. As raízes são usadas para aromatizar chás e até para substituir o lúpulo na função de dar amargor à cerveja. As flores colorem e dão sabor a vinhos e cidras.
Costela-de-adão
Monstera deliciosa
Esta planta, da família da taioba, tem as folhas tóxicas. O fruto maduro, porém, é saboroso e perfumado. Como ele amadurece aos poucos, cuidado: as partes verdes são tóxicas e anestesiam a língua. As partes maduras expõem a polpa perfumada. Não confundir com os filodendrons, cujos frutos podem não ser comestíveis.
Cará-moela
Dioscorea bulbifera
Trepadeira que produz batatas aéreas coladas nas axilas das folhas. Tem esse nome por lembrar uma moela de galinha. É a batata mais fácil de colher, já que, madura, cai no chão.
Caferana
Bunchosia armeniaca
Seus frutos são climatéricos – amadurecem depois de colhidos, de forma abrupta, ficando molengas, vermelhos e com sabor de manteiga de amendoim (com um toque de tomate). Podem ser espalhados diretamente sobre o pão ou transformados em molhos e geleias.
Nem tudo que cresce espontaneamente pode ser ingerido. Evite comer plantas com as seguintes características:
1. Pelos ou espinhos
É o caso da coroa-de-cristo (Euphorbia milii). Algumas espécies de urtiga, entretanto, são livres de toxicidade e altamente nutritivas.
2. Cores vibrantes
Plantas com coloração intensa e variada, como o tinhorão (Caladium bicolor), costumam ser venenosas.
3. Ornamentais
Muitos vegetais decorativos são tóxicos. Isso inclui os lírios de floricultura, que são muito parecidos com variedades espontâneas e comestíveis, como o lírio-amarelo.
Látex ou seiva
Outra característica da coroa-de-cristo. Uma exceção é a alface, que foi domesticada e melhorada até ser universalmente difundida.
Frutos brancos ou azuis
Fique longe: costumam ser tóxicos. Duas exceções são o mirtilo (blueberry) e a pixirica.
Ausência de insetos e aves
Plantas tóxicas quase nunca servem de alimento para os animais. Se eles não se aproximam, não é bom sinal.
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