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Mesmo com cortes, acelerador de partículas Sirius avança nas obras

Obras no interior do acelerador de elétrons Sirius (Foto: Thiago Tanji)

A ciência brasileira sofre diante dos seguidos cortes de investimentos do governo federal. Se contássemos nossa história como capítulos de Star Wars, estaríamos na parte em que os Jedi lutam para não serem destruídos. Mas sempre há Uma Nova Esperança: aos trancos e barrancos, centenas de trabalhadores colocam de pé o maior projeto científico e tecnológico desenvolvido no Brasil nos últimos anos.

Quando estiver pronto para testes, em 2019, o acelerador de partículas Sirius será o equipamento mais avançado do mundo na geração de luz síncrotron, que tem alto brilho e permite o estudo na escala atômica de praticamente qualquer material. Diferentemente de aceleradores como o LHC, que fazem a colisão de partículas, os síncrotrons usam os elétrons apenas como meio para obter esse tipo especial de radiação.

"O Sirius é um projeto estruturante no país porque ele impactará de uma maneira decisiva  um conjunto de áreas: ele colocará o Brasil em um patamar de fronteira", afirma a GALILEU Antônio José Roque, diretor do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), que faz parte do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM). Localizado na cidade paulista de Campinas, o Sirius conta com um prédio de 68 mil metros quadrados, com aceleradores de partículas capazes de analisar a estrutura atômica de materiais orgânicos e inorgânicos. 

Ao custo de mais de R$ 1,5 bilhão, a construção do Sirius esbarra nos subsequentes cortes de investimentos do governo federal. Apesar de estar ligado ao PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), projeto lançado em 2007 pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva para o investimento em diferentes setores de infraestrutura do país, as reduções orçamentárias do governo de Michel Temer impactam diretamente nas obras do acelerador de partículas: custos operacionais do CNPEM foram reduzidos em mais de 40% e os coordenadores do Sirius ainda aguardam o repasse de verbas de dezembro deste ano para dar continuidade ao planejamento de 2018. 

"O Brasil está correndo um risco gigantesco de prejudicar de forma bastante séria um esforço de décadas: apesar de percalços e nem sempre as melhores decisões, houve uma política científica razoavelmente consistente nas últimas décadas, de formação de recuros humanos, de melhoria de infraestrutura, uma série de ações de áreas estatégicas", afirma Roque, em entrevista concedida em seu escritório no CNPEM. "Em poucos anos você consegue destruir tudo isso: construir é muito difícil, destruir é muito mais fácil. E por isso esse é um momento extremamente preocupante." 

Apesar das preocupações com o futuro próximo, visitar as obras do Sirius fornece um alento de esperança para a ciência: o prédio que receberá o acelerador de partículas está em estágio avançado de construção e espera no final do próximo ano receber os equipamentos — boa parte das tecnologias foram produzidas por empresas brasileiras.

Em 2017, um dos principais desafios dos engenheiros da obra foi construir o piso de acordo com as especificações requeridas: para o sucesso dos testes com as partículas, é necessário que não aconteçam vibrações no interior do prédio. Após uma série de testes, os trabalhadores conseguiram concluir o projeto com sucesso. 

Piso concluído do interior do prédio (Foto: Thiago Tanji)

 

Com extensão superior de 500 metros, o anel por onde os elétrons percorrerão será capaz de prover até 40 linha de luz responsáveis pela análise das partículas — para isso, as oscilações devem ser mínimas. A precisão e a capacidade tecnológica são tantas que será possível, por exemplo, realizar a tomografia de celulas e vasculhar o DNA do interior de seu núcleo, em uma projeção realizada em três dimensões. 

"O Sirius é uma ferramenta pensada para prover para a comunidade brasileira o que tem de mais competitivo em um conjunto amplo de técnicas. Nossa expectativa é que ele seja uma ferramenta que beneficiará diferentes setores: no início, ele responderá perguntas em um nível mais fundamental, mas isso terá consequências para saltos tecnológicos", afirma Roque. Confira abaixo a entrevista completa com o diretor do projeto que se encaminha para tornar-se um orgulho nacional. 

Exterior do Sirius (Foto: Thiago Tanji)

Qual é sua avaliação do que foi realizado em 2017 em relação às obras? 
Esse foi um ano em que tivemos a sensação de que conseguimos, apesar das dificuldades e de que há muito trabalho pela frente. Tínhamos muitas preocupações e fomos caminhando mês a mês: vencemos algumas das etapas mais difíceis, como a fabricação do piso especial, que tinha condições e requisitos técnicos bastante apertados. Também conseguimos trabalhar para negociar o faseamento da obra, minimizando qualquer possível atraso.

O projeto caminhou bastante bem, principalmente considerando o cenário em que estávamos e tivemos o apoio firme do MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações) ao longo de todo esse processo, além do Ministério do Planejamento, por ser uma obra do PAC. Também caminhamos bem em relação ao desenvolvimento dos aceleradores e linhas de luz, recebemos uma série de componentes e o anel do sistema de vácuo está praticamente pronto. 

Mas a perspectiva é de que temos um período difícil: estamos aguardando uma liberação neste final de dezembro que será importante para vermos se conseguiremos cumprir nosso cronograma para 2018.

E quais são as perspectivas para 2018?
A meta para ano que vem é concluir a obra, que entrará em uma fase de menor visibilidade externa, mas que será crucial: são as instalações da parte elétrica, do ar condicionado, da água. É um trabalho delicado e isso tem de andar bem para deixarmos tudo pronto para que os equipamentos possam eventualmente ser ligados.

Devido às dificuldades, fomos obrigados a reorganizar uma série de atividades e a montagem dos aceleradores terá de começar com a obra ainda em andamento, para conseguirmos cumprir o cronograma. A nossa meta é entrar nessa fase de conclusão para instalarmos o primeiro feixe até meados de agosto e depois fazer esse elétron andar de acordo com as especificações, para entregar à comunidade científica entre o final de 2018 e 2019. 

O projeto irá até 2020, ele continuará em sua sequência de montagem de linha de luz e aumento de corrente de elétrons para você entregar de fato em 2020 as especificações completas de projeto. E o sucesso dele será quando ciência de alto nível começar a ser feita: só sentirei que cumpri minha obrigação quando a ciência começar a ser produzida. E não vejo a hora disso acontecer, é meu sonho.

Com um equipamento desses, qual tipo de ciência conseguiremos produzir no país?
Apesar do projeto ter começado a parte civil de construção no final de 2014, tivemos a estratégia de aguardar na tomada de algumas decisões para poder melhorar o equipamento o máximo possível, o que permitirá uma competitividade ainda maior para o Sirius em relação ao que temos no mundo. As linhas de luz foram consolidadas mais para frente, acompanhando do que há de mais desafiador no momento.

Temos uma linha de condições extremas, permitindo que se atinjam as pressões mais altas no mundo, com temperaturas altas e baixas e campos magnéticos. Conseguir atingir as condições com maior variedade no mundo. E isso permitirá que você descubra novos materiais e entenda o comportamento de uma série de materiais, porque um determinado composto em diferentes condições de pressão e temperatura podem apresentar grandes novidades.

Temos um conjunto de linhas de luz que vão fornecer o que há de mais moderno de imagens e microscopia para diferentes tipos de materiais orgânicos e inorgânicos, em que você consegue fazer experimentos bem mais rápidos em relação ao resto do mundo, com resolução espacial, combinando isso com resolução química. Haverá um conjunto de potenciais áreas que vão se beneficiar dessas técnicas e você conseguirá fazer o que está na fronteira da ciência, o que tem de mais moderno.

O Sirius é uma ferramenta pensada para prover para a comunidade brasileira o que há de mais competitivo em um conjunto amplo de técnicas. Dentro do CNPEM temos pensado em um conjunto de experimentos, explorando ao máximo essa fronteira e temos feito workshops e treinamentos para que sejam pensados novos experimentos. E minha expectativa é ver trabalhos importantes saindo assim que o Sirius atingir suas especificações.

Interior do acelerador de partículas (Foto: Thiago Tanji)

Qual é a importância e os impactos para a ciência brasileira ao desenvolvermos tecnologia e componentes de alto conhecimento no país?
O Sirius é um projeto estruturante no país porque ele impactará de forma decisiva em um conjunto de ações ou de áreas. Ele colocará o Brasil em um patamar de fronteira, e isso serve para a área acadêmica e também para empresas que desejam desenvolver seus produtos e processos. Durante sua construção, componentes tecnologicamente sofisticados precisaram ser desenvolvidos e conseguimos em grande parte envolver empresas nacionais. E há a questão cultural, de você ter a coragem de fazer a inovação de ponta e de que é possível fazer essas coisas no Brasil.

Um dos legados que um projeto como o Sirius deixa é que, sim, é possível fazer projetos nessa escala, com mão de obra brasileira e com jovens das mais variadas áreas. Essa é uma mudança de mentalidade: não precisamos comprar tudo de fora, podemos fazer aqui e pensar em coisas que ninguém nunca desenvolveu. Isso é uma coisa que falava para meus alunos quando era professor da USP: a gente tinha esse complexo de "Ah, se ninguém fez nos Estados Unidos, não adianta". E eu dizia: "Pessoal, a mecânica quântica é igualzinha no Brasil e lá fora, a física é idêntica também, então você é capaz quanto qualquer outro". É uma questão de ter uma atitude correta, ter um bom projeto, uma boa organização. É possível fazer. 

Nesse último período, a comunidade científica mostrou-se muito preocupado com cortes de investimentos por parte do governo federal. Quais as dificuldades colocadas e como isso pode ser superado? 
Esse é um ponto bem importante. Existiram e existem dificuldades regulares ligadas a financiamento. Um dos méritos do projeto foi conseguir construir bases sólidas para que ele se tornasse prioritário para o governo federal, com o PAC. Mas no início de 2017 o PAC teve um corte de 42% e não foi integralmente revertido, longe disso. Foi necessário que o MCTIC  priorizasse suas obras dentro do PAC e, como o projeto do Sirius já estava bem encaminhado, isso fez que ele se tornasse prioritário. 

Mesmo com a priorização, houve momentos de incertezas de quando ocorreriam as liberações de verbas. E precisamos de um esforço de gestão da equipe do projeto para priorizar as atividades e não prejudicar ou minimizar o prejuízo de qualquer atraso. E ainda não temos a certeza garantida  porque continuamos aguardando nessas últimas semanas do ano as liberações.

Quando o Sirius entrar em funcionamento, qual será o planejamento para garantir que a operação permaneça em relação à continuidade de investimentos?
Essa é uma grande preocupação. Como o projeto tem a sua escala até 2020, mesmo que ele comece a receber usuários em 2019, ele ainda não estará entregue em seu escopo global. E isso nos dará um colchão para estruturar a operação: a própria Casa Civil demonstrou essa preocupação, e estamos realizando discussões com o MCTIC e o Ministério do Planejamento para ver como será essa estrutura de operações.

Provavelmente será necessário trazer diferentes atores para o diálogo, tanto no setor acadêmico, quanto no setor empresarial e industrial, para o desenho de um equipamento de alto padrão como esse. Além disso, é uma preocupação muito grande do laboratório como o impacto dessa crise afetará os usuários. Não adianta ter um equipamento como esse se você desmontar o sistema de ciência e tecnologia do Brasil.

Dentro do que conseguimos fazer, daremos o máximo de apoio possível para que boas ideias possam ser executadas e estaremos ampliando o apoio para a execução dos experimentos, principalmente pela situação de carência de certos equipamentos em algumas regiões do Brasil.

É importante ter a ciência forte no país porque ela é que utilizará o equipamento e é uma grande preocupação nossa esse cenário de dificuldade e a gente espera que tenhamos uma reversão disso, apesar do orçamento de 2018 não estar muito positivo: inclusive o próprio ministro Gilberto Kassab (do MCTIC) comentou que esse orçamento é incompatível com as aspirações do Brasil para o desenvolvimento da ciência e tecnologia.

E o país está correndo um risco gigantesco de prejudicar de forma bastante séria um esforço de décadas: apesar de percalços e nem sempre das melhores decisões, houve uma política científica razoavelmente consistente nas últimas décadas, de formação de recuros humanos, de melhoria de infraestrutura, uma série de ações de áreas estatégicas.

O Brasil hoje domina o ciclo de enriquecimento de urânio, poucos países dominam esse ciclo e isso foi esforço contínuo de ciência e tecnologia. O Brasil tem uma das indústrias aeroespaciais que competem mundialmente e isso é resultado de uma escola como o ITA, toda uma política de desenvolvimento no setor. O Brasil tem uma agricultura forte como a Embrapa, na área de engenharia agrícola. Óbvio que você pode dar saltos e estruturar maneiras de melhorar cada vez mais, principalmente em um mundo cada vez mais competitivo. Mas em poucos anos você consegue destruir tudo isso: construir é muito difícil, destruir é muito mais fácil. E por isso esse é um momento extremamente preocupante.

Trabalhadores realizam instalação no prédio do Sirius (Foto: Thiago Tanji)

 

Um projeto dessa magnitude consegue impactar quais tipos de tecnologias?
Óleo e gás, por exemplo, é muito fácil de visualizar, com a exploração em rochas do pré-sal. A rocha nada mais é que um objeto poroso com o óleo preso nesses poros e você precisa extrair o petróleo de forma eficiente em uma mistura de óleo, gás e água. Ao utilizar um equipamento como o Sirius, você pode entender em uma escala que antes era impossível a interação do óleo, do gás e da água com a rocha e como ele flui nas condições de pressão e temperatura do pré-sal. Isso pode permitir um avanço do conhecimento que tem um impacto significativo nesse setor.

De forma semelhante, na agricultura: o solo é um objeto poroso em que você terá as raízes penetrando, ele tem densidade, rigidez, você tem fertilizantes que são íons que penetrarão nesses poros. E para aumentar a eficiência de uma série de processos, você pode utilizar uma ferramenta como o Sirius para essa compreensão: tem uma região conhecida como Tabuleiros Costeiros em que o solo ao ser molhado fica bem mole e quando ele seca fica muito duro, o que dificulta a penetração de raízes, trazendo uma baixa eficiência para plantio de cana. E não é óbvio ainda por que isso acontece, apesar dos anos de estudos realizados. E o Sirius é um equipamento que pode propiciar que isso seja melhor entendido.

Em saúde, podemos estudar o cérebro em relação às doenças degenerativas, organização de neurônios, interconexões, troca de neurotransmissores. E o Sirius será uma das máquinas que permitirá que você tenha imagens em 3D do cérebro com resolução ao nível de neurônios individuais, permitindo que você possa ter saltos nesse conhecimento.

Na área de biologia celular, o Sirius trará um impacto grande, porque ele permite a tomografia de células com uma resolução que permitirá que os pesquisadores enxerguem a estrutura de organização do DNA dentro do núcleo, que pode vir a ter um impacto grande em diferenciação celular, doenças genéticas, funcionamento da célula. Estamos falando de como enxergar como o DNA está organizado.

Nossa expectativa é que ele seja uma ferramenta que beneficiará diferentes setores, trazendo uma ferramenta que no início responderá perguntas em um nível mais fundamental, mas que terá consequências para saltos tecnológicos.

Prédio do Sirius (Foto: Thiago Tanji)

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Lute pela ciência (Foto: GALILEU)

 

 

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